crime e castigo

Estava-se mesmo a ver no que ia dar a vergonhosa entrevista do actual presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Miguel Oliveira da Silva (MOS), médico pretensamente pró-escolha, mas que é objector de consciência no hospital onde trabalha. Sobre essa entrevista falei há uns dias atrás aqui.

De repente, o policiamento do útero das mulheres volta a estar na ordem do dia. De repente, o discurso médico, dos especialistas, pretende voltar a constituir-se como legitimador e a suplantar o discurso dos direitos e da cidadania. De repente, as mulheres voltam a ser remetidas para o silêncio, para que se escute a voz deles, todos muito especialistas mas incapazes de contar na primeira pessoa a experiência de uma gravidez não desejada. De repente, as Isildas e os Isildos Pegados deste país voltam a ter a oportunidade de se imiscuir na vida das mulheres.

Por tudo isto, o meu agradecimento a MOS pelo facto de ter contribuído para que o discurso que pretende recolocar a apreciação do comportamento sexual das mulheres como argumento válido para a ponderação da realização de um aborto seguro e legal voltasse a ser audível. Muito obrigada por nos devolver, a nós, mulheres, ao reino da infantilidade.

Na verdade, o discurso sustentador desta proposta de alteração legislativa, que propõe que o aborto deixe de ser gratuito em caso de reincidência e de falta à consulta de planeamento familiar, ainda não deixou de conceptualizar as mulheres que abortam como criminosas. Só assim se entende esta pressão para castigá-las. O sinal está dado: quem faz um aborto está do lado do desvio; a maternidade continua a ser a norma.

Apesar de o número de mulheres que falta à consulta de planeamento familiar após a interrupção voluntária de gravidez estar abaixo da média dos outros países com uma legislação semelhante, o alarme está lançado e com ele, a rebate, os discursos censórios sobre as práticas das mulheres, como tão bem encarna MOS: «É uma falta de civismo que uma mulher que faz um aborto de borla, às nossas custas, não se dê ao trabalho de comparecer à consulta». Felizmente, também entre os médicos há vozes dissonantes (e aqui).

Gostava, no entanto, de conhecer o dito estudo que origina que os supostos «especialistas» teçam comentários tão contundentes. Não o conheço, mas acredito que exista, caso contrário todas estas considerações seriam irresponsáveis. E por isso pergunto: há alguma regularidade que nos permita dizer quem são as mulheres que reincidem na prática abortiva? É que tenho para mim que grande parte delas são imigrantes. Umas fogem à pobreza e ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, reproduzindo as suas vidas clandestinas; outras reproduzem o ambiente em que foram socializadas e onde o aborto funcionava, não raras vezes, como método de controle da fertilidade. Mas isto é apenas um palpite.

Reconheço que a ausência de práticas contraceptivas é motivo de preocupação e que sobre ela se deve reflectir e encontrar caminhos. O que não me parece é que a melhor forma de o fazer seja através do castigo e da tentativa de repor o quadro moral que foi derrotado no referendo de 11 de Fevereiro de 2007.

Importa pois, como diz Duarte Vilar, director executivo da Associação para o Planeamento da Família, «começar a debater o que deve ser adequado à realidade». E é nisso que nos devemos centrar. Perceber onde falha e porque falha o planeamento familiar; não tomar as mulheres como um todo homogéneo, mas antes diverso, no sentido de adequar as campanhas ao público a que se dirigem, como forma de permitir não só que elas sejam compreendidas mas também que conduzam à alteração de práticas sociais. E claro, educação sexual nas escolas livre de atavismos.
Quanto ao resto, lá teremos que voltar a dizer: mantenham os vossos ideários longe dos nossos ovários.
[Imagem: Jack-in-the-Pulpit No. IV, de Georgia O'Keeffe]

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