não acredito na bondade de sarkozy

A discussão que a Magda e o Diogo aqui lançaram é importante e interessante. Decidi intervir nela através de um post e não de um comentário porque queria fazer uso desta imagem.

Tendo a pensar que a questão não sendo simples não deve, contudo, ser complexificada até à exaustão sob pena de não nos centramos no que me parece ser essencial: o resultado prático da aplicação desta lei. E por isso, sem querer desmerecer toda a reflexão que já foi sendo produzida sobre o assunto, tendo a ser essencialmente pragmática.

Concordo que o uso da burka carrega em si todo um historial de opressão e que é uma manifestação clara da subordinação das mulheres. Abomino e combato todas as culturas e práticas sociais que se alicerçam na opressão, mas acho que não é isto que a lei de Sarkozy pretende combater e muito menos acredito que os seus efeitos práticos sejam esses.
Defendo que o Direito deve ter um papel emancipatório e mesmo vanguardista nas sociedades. Mas as leis não são apenas enunciados escritos, elas alteram quotidianos. E, nesse sentido, a discussão abstracta não me basta. Preciso de antecipar os efeitos dos enunciados legislativos para tentar perceber se à justeza teórica corresponderá mais justiça nos modos de vida. E, evidentemente, não me parece que a legislação deva ser feita para que se possam produzir barómetros emancipatórios: a minha legislação é mais à frente do que a tua!
As leis alteram a vida concreta das pessoas e são essas transformações que, creio, devem ser ponderadas e antecipadas. E é pelos efeitos práticos que me parece que esta legislação vai produzir na vida das raparigas muçulmanas que não posso defendê-la. Com isto quero dizer que não reconheço esta lei com surgindo de uma demanda laica nem tão pouco feminista. Se assim fosse, outras indumentárias haveria que proibir. Esta lei surge, em meu entender, porque Sarkozy quer mostrar quem manda e fá-lo através do ponto mais fraco da comunidade integrista que, além do mais, é passível de despertar as solidariedades mais inesperadas. O problema é que esta é uma medida avulsa, que não está integrada em nenhum plano de intervenção e empoderamento destas raparigas. Tem, tão-só, o objectivo de mostrar quem manda e de afirmar a superioridade da cultura de acolhimento, não assentando em nenhuma espécie de protecção das raparigas e das mulheres, pretendendo apenas incendiar uma comunidade sem medir os riscos. E eu acho que o efeito é exactamente o contrário do problema que a lei diz pretender combater.
Creio que o Estado, ao arrepio da comunidade integrista muçulmana que obriga as raparigas e as mulheres a usarem burka, deve proteger (e promover) todas aquelas que decidam romper com essa tradição. E deve protegê-las de várias formas: com políticas dirigidas a essas mulheres, que as capacitem económica, social e culturalmente na eventualidade de elas quererem romper com a tradição da comunidade em que estão integradas. E isso, do meu ponto de vista, consegue-se com educação. Proibi-las de frequentar a escola se usarem burka é comprometer o seu futuro; achar que as comunidades muçulmanas integristas se deixarão convencer com esta chantagem é, em meu entender, ingenuidade.

O que o Estado deve procurar garantir, de todas as formas possíveis, é que não haja abandono escolar, nem destas raparigas nem de ninguém.

Creio que a escola é precisamente o meio que estas raparigas têm de se libertar de uma tradição que as oprime e, mais do que isso, as atomiza. Não acho que seja solução a troca de roupa à entrada e à saída da escola. Primeiro, porque é esquizofrénico; segundo, porque não acredito que nenhum integrista vá nessa conversa e, por isso, o resultado mais previsível é o abandono escolar. E o pior que pode acontecer a estas raparigas é serem privadas dos meios que lhes podem permitir romper com a sua comunidade de origem se assim o entenderem. Sem escolaridade ficarão irremediavelmente à mercê da tradição e jamais terão condições de emancipação.

Dir-me-ão: isso é um processo demasiado longo e sem garantias de sucesso. De acordo. No entanto, eu não tenho coelhos brancos na cartola. Tirem-nos as muçulmanas que eu estarei solidária. Nos coelhos de Sarkozy é que, definitivamente, não acredito.

A escolha desta imagem pretende apenas mostrar que as indumentárias ligadas a confissões religiosas são comuns. Eu sei que ser freira é uma escolha e que usar burka não é (ou, pelo menos, é uma escolha bastante mais condicionada). Mas o catolicismo também carrega em si toda uma narrativa que afirma a inferioridade das mulheres. No entanto, é impensável proibir uma freira (ou noviça) de frequentar a escola ou espaços públicos se usar hábito, mas não é impensável fazê-lo a uma rapariga que usa burka. Tudo isto para dizer que não acredito na ingenuidade e na bondade de Sarkozy e muito menos no seu comprometimento com a emancipação das raparigas muçulmanas.

8 comentários:

magda alves disse...

És uma máquina mulher! :) Estava à espera de uma intervenção tua sobre o tema e curiosa por saber a tua posição ou inclinação. Não fui desiludida. Muito bom post, com um ângulo importante e talvez, de facto, o essencial quando se avalia a pertinência ou não de uma lei e seus efeitos. Concorda na íntegra. Boa*

Unknown disse...

Ora aqui está finalmente um texto sobre esta coisa com o qual estaria disposto a concordar. 8-)

cris disse...

apoiado!! mil vezes apoiado! é mesmo isso. abraço cd

Ricardo S. Coelho disse...

Concordo.
Para proteger os direitos das mulheres, perseguem-se mulheres que usam o véu integral. Isto pode fazer sentido para a direita islamofóbica mas para mim não faz. O pior é que há partes da esquerda que mordem este isco.

Andrea Peniche disse...

Um outro contributo para a discussão, via India. O texto é longo, mas vale a pena. Para as/os preguiçosas/os, leiam pelo menos o último parágrafo!
http://www.radicalsocialist.in/index.php/articles/statement-radical-socialist/185-banning-the-veil-rights-of-women-security-or-anti-islamic-racism-and-communalism

Cátia Guerra disse...

Na mouche ;)

Miguel Serras Pereira disse...

Cara Andrea,
sem precisar de acreditar minimamente no Sarkozy ou sequer de apoiar o modo como a lei francesa foi posta em vigor, divirjo de ti nalguns aspectos importantes, ainda que a partir de perspectivas de fundo solidárias. A minha posição sobre o assunto, foi resumida em dois curtos posts ( http://viasfacto.blogspot.com/2010/07/uma-especie-de-ponto-de-ordem-ainda.html e também http://viasfacto.blogspot.com/2010/07/dar-cara.html#comments). Retomo aqui a ideia de que importa levar a discussão um pouco mais longe:
"Uma coisa é dizer que qualquer regulamentação ou enquadramento vinculativo do que se pode e não pode fazer no espaço público informal (a rua, cafés, jardins, espaços de conviviais comuns, feiras, estabelecimentos abertos ao público, ou em suma: a ágora) é, sempre e em todos os casos, uma maneira de atentar contra a liberdade ou de a limitar, ainda que o legislador seja a "multidão" organizada em órgãos que garanta a cidadania governante, ou seja a participação igualitária de todos no seu próprio governo.
Outra, muito diferente, é dizer que, embora sendo inconcebível pensarmos numa sociedade sem regulação desse espaço da ágora, tal significa que qualquer regulamentação é justa ou politicamente avisada.
Assim, considerar que a proibição da ocultação do rosto nas ruas, etc. nada tem, em princípio, de aberrante, não quer dizer que a recente lei francesa tenha sido decidida com acerto político (acerto político significando, na minha perspectiva, boas razões democráticas), quando consideramos o seu momento, os pressupostos e as condições da sua adopção, os seus agentes e a sua circunstância.
Desta posição, que é a minha, resulta todavia que os problemas a discutir são, à partida, pelo menos dois, um e outro em diferentes planos:

1. Como se pode e deve, ou não deve nem pode, legislar sobre o espaço público informal e suas regiões adjacentes, incluindo a vizinha esfera doméstica ou das relações familiares e a da educação?
2. Que avaliação fazer da lei francesa e/ou de outras medidas tomadas ou propostas no mesmo sentido, e quais a posição política e os termos do debate a tentar promover perante elas?"

Dito isto, gostaria de acrescentar que, em todo o caso, no que se refere à educação/formação dos cidadãos membros de uma sociedade, a questão não se resolve dizendo apenas que todos devem ter direito ao ensino, porque há uma batalha a travar em torno do ensino e da sua universalidade, teor e natureza. Por exemplo, resolver o problema das burcas não será possível se o ensino religioso for consentido na escola pública ou se for dada equivalência legal a escolas confessionais. A doutrinação religiosa deverá ser excluída radicalmente do sistema de ensino, e ser permitida apenas - dentro de certos limites - nos templos e no espaço doméstico. E no que se refere ao sistema de ensino universal, este deve ser obrigatório: o que significa que as raparigas muçulmanas terão de o frequentar sem burca, embora não ache mal que possam usar um emblema religioso discreto (um fio, por exemplo, com um crescente em vez de um crucifixo) se assim lhes agradar. Aqui, a liberdade política opõe-se à chamada "liberdade de ensino": a invocação desta última não pode ser usada para impedir que todas e todos recebam - como futuros cidadãos adultos - a mesma educação de base, universal e obrigatória, publicamente definida.
E podíamos continuar.Talvez valesse a pena. No entanto, para já, creio ter dito o suficiente - para começo de conversa.

Com um abraço cordialmente igualitário

miguel serras pereira

Andrea Peniche disse...

Miguel,
Obrigada pelas tuas palavras.
É claro para ambos o que subjaz à lei Sarkozy. O título do post é provocatório na mesma medida em que a lei o é. Sarkozy lançou uma casca de banana e muita esquerda e feminismo parecem ter escorregado. Acho que sobre isso não é preciso dizer mais.
Sobre educação, o que disse é muito básico porque o que me movia era a desmontagem do argumento de Sarkozy. Evidentemente que sobre isso há muito mais a dizer: não basta garantir o acesso das raparigas à escola; é necessário garantir também a sua integração e o seu sucesso. Isso levar-nos-ia a um outro debate sobre escola inclusiva, condições de acesso e de sucesso, integração na vida activa e na comunidade, etc.
Concordo contigo quanto à exigência de uma escola não confessional. Nunca alinhei com o discurso que diz que se o catolicismo tem lugar na escola pública as outra confissões também deveriam ter. A escola não tem que ser religiosamente pluralista simplesmente porque a escola não é um espaço de confissão.
Mas creio que o debate sobre a admissibilidade da burka não só não é o mesmo (falamos de indumentária e não de currículo) como não pode ser feito de forma desgarrada das raparigas concretas que a lei atingirá; aqui e agora há uma questão a resolver e a forma como o fizermos tem implicações concretas na vida delas. E é isso que me preocupa. A emancipação não se decreta pela força. O que é preciso é criar as condições para que elas sejam agentes da sua própria libertação. A lei pode ajudar, mas esta lei em concreto retira-lhes a única, ou quase única, ferramenta que a sociedade de acolhimento tem para lhes oferecer: educação.
Não nos compete ingerirmo-nos e dizer-lhes o que devem fazer, mas antes proporcionar-lhes os meios para que possam ser elas a dizê-lo, a fazê-lo e a reclamar a nossa solidariedade. Isso implica tolerarmos a burka na escola? Se essa é a única forma que temos para garantir que elas a frequentem, pois assim seja. Não me agrada a burka por todas as razões (simbólicas e concretas) mas mobiliza-me mais a possibilidade de estarmos a contribuir para o empoderamento destas raparigas. Sem escolarização jamais conseguirão um emprego; sem ir à escola jamais abandonarão o espaço doméstico. E é a ruptura com este acantonamento que acho que temos obrigação de garantir.
Os princípios universais são necessários mas ao homegeneizarem a vivência humana obliteram a sua diversidade e a sua contingência.
Por isso defendo a facadinha no purismo teórico em favor da vida concreta.
Um abraço.

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