Cassandra

Corre uma petição na internet contra um crime denominado violação correctiva que, ao que parece, é práctica corrente em África do Sul. O caso de Millicent Gaika, que foi violada e torturada horas a fio para que a sua sexualidade fosse corrigida, tem trazido esta questão à superfície. Neste mesmo país, Eudy Simelane foi violada e assassinada depois de tornar pública a sua orientação sexual e de ter feito da defesa dos direitos sexuais uma batalha. Esta prática pretende, imagine-se, corrigir a sexualidade das lésbicas. Não há, no entanto, relativismo cultural capaz de justificar a barbárie. Trata-se de crimes e como crimes de ódio devem ser encarados.

Estas notícias transportam-me para uma outra que me trouxe e traz algum incómodo: Julian Assange é acusado, por duas mulheres, de violação.

Poderia a caça a Assange significar que o entendimento internacional sobre a gravidade do crime de violação estava a mudar, mas não me parece que seja esse o caso nem que a Suécia e a Inglaterra estejam determinadas a fazer da luta contra a violação um desígnio internacional. Usar a violação como motivo para deter Assange foi um acto sem precedentes. A acusação (e detenção) que pende sobre Assange é, parece-me, a desculpa humanitária perfeita para a violação dos direitos humanos e para a aplicação de uma justiça feita à medida das necessidades dos incomodados com as revelações da wikileaks.

Não sei se Assange violou ou não as duas mulheres que o acusam. Tenho a minha opinião e, confesso, que uma acusação desta natureza me incomoda. Assange tem prestado, em meu entender, um enorme serviço à democracia e, por isso, preferia continuar a tê-lo arrumado no lote das pessoas recomendáveis. Os tribunais que o julguem. Mas, o que verdadeiramente me incomoda no meio disto tudo é que, na eventualidade dessas acusações serem falsas, tudo isto signifique mais um recuo na compreensão da violação como um crime intolerável. Acusá-lo falsamente significa desrespeitar todas as pessoas, sobretudo mulheres e crianças, que sobreviveram ao crime de violação e agressão sexual. A violação é o pano de fundo que alimenta o tráfico de seres humanos; é usada como arma e troféu de guerra; como manifestação do entendimento das mulheres como seres humanos subalternos, como recusa do seu direito à autodeterminação sexual. Usá-la como estratégia de silenciamento de Assange é insultar todas as mulheres que sofreram lesões vaginais e que são marginalizadas nas suas culturas em virtude de terem sido violadas. E, por isso, o peso de uma falsa acusação é quase tão grave como o do próprio crime.

Apolo, nas palavras de Homero, apaixonou-se por Cassandra e prometeu-lhe o dom da profecia, caso ela cedesse aos seus desejos. Cassandra, após ter sido instruída nos dons da profecia, esquivou-se aos desejos de Apolo que, zangado, lhe retirou o dom da persuasão, transformando as suas profecias em letra morta. Cassandra previu o destino trágico de Tróia, mas a sua palavra não tinha valor. E, por isso, Cassandra é hoje, nas palavras de Janet Mills, o símbolo da recusa patriarcal em confiar na palavra das mulheres.

Um não significa mesmo não e não pode sobre isso existir qualquer outra interpretação possível. Que exactamente duas mulheres possam estar a colocar em questão o valor da palavra das mulheres é aquilo que me incomoda verdadeiramente.
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