lobbying celestial

Quando penso na falta de celeridade dos tribunais portugueses e na injustiça que isso provoca, para meu conforto, costumo convocar o Vaticano e a sua causa dos santos e santas. Nuno Álvares Pereira foi beatificado em 1918, mas só em 2009 foi canonizado; Maria Clara do Menino Jesus vai ser agora beatificada, após o reconhecimento de um milagre ocorrido em 2003.

Na verdade, o momento que vivemos justifica uma visão mais alargada das possíveis entidades auxiliadoras. Se Angela Merkl, François Trichet e o diabo a quatro fazem orelhas moucas às nossas súplicas, voltemo-nos para quem efectivamente pode interceder por nós. Lembremo-nos que a Nossa Senhora já nos livrou do petróleo do Prestige. Porém, apesar do crédito que temos junto de Nossa Senhora, o momento que vivemos reclama mais do que as preces de Paulo Portas. Como já desperdiçámos os serviços de espionagem de Carlos Santos Ferreira, resta-nos apostar no lobbying celestial, no qual podemos ser bastante competitivos. Para isso precisamos de muitos beatos e beatas, santos e santas. Para se ser candidato a beato ou beata, basta ter realizado actos que escapam à compreensão humana, ao entendimento racional. E lá nisso, justiça seja feita, estamos no pelotão da frente.

A lista que apresento peca por defeito, é verdade, mas como nos negócios a antecipação é uma arma e o processo de beatificação é ainda mais moroso do que a justiça portuguesa, o melhor é irmos ganhando tempo.

1. Cavaco Silva. Presidente da República. Em 2006, Manuel Pinho, o então Ministro da Economia, anunciava o fim da crise. Em 2010, Cavaco Silva vem dizer-nos que em 2003 previu a crise e o rumo catastrófico da economia portuguesa. É verdade que estava bem colocado para o prever, ou não andasse ele desde 1985 por dentro do assunto. No entanto, sete anos de silêncio e imobilismo são o retrato do mais abnegado acto de contrição. Incompreensível.

2. José Sócrates. Primeiro Ministro. Tudo tem aguentado: críticas ao seu bom gosto enquanto projectista na Câmara da Guarda, o curso superior na Independente, a acusação de tentativa de controle dos média, os salários milionários dos amigos, a autorização de utilização da Base das Lajes para que os EUA pudessem repatriar os presos de Guantánamo... É um saco de pancada, um mártir. Quem tudo aguenta sem nada pedir, tirando os PEC, é porque tem uma missão. Beatifique-se.

3. Pedro Passos Coelho. Presidente do PSD. Quando o líder do PSD se inteirou da situação do país, que Cavaco Silva conhecia, apesar de não lhe ter dito nada, aceitou dançar o tango com José Sócrates. Em qual dos PEC é que íamos na altura?! Porém, achou por bem pedir desculpa ao povo contra quem tinha assinado um pacto, assim como achou por bem viabilizar o Orçamento do Estado. Inexplicável.

4. Maria de Lurdes Rodrigues. Ministra da Educação entre 2005 e 2009. Conseguiu o milagre de colocar a esmagadora maioria da classe docente contra as suas propostas, tendo enfrentado oito greves, sete manifestações, três vigílias e dois cordões humanos de professores e professoras. Conseguiu a proeza de colocar 120 mil docentes na rua em protesto contra as suas políticas. Quando a razão recomendava um retiro para a pacatez, a ex-Ministra lança o livro «A Escola Pública Pode Fazer a Diferença», cuja capa é o seu retrato. Escapa não só à razão humana como à lógica comercial.

5. Américo Amorim. Empresário. Em Janeiro de 2009, o patrão da cortiça decidiu despedir preventivamente 193 trabalhadores e trabalhadoras. Depois desta medida, aumentaram as horas extraordinárias para os e as que lá ficaram. Os lucros, esses, pelos vistos, continuam a aumentar, o que coloca esta ideia de despedimento preventivo no rol das coisas que escapam à razão humana.

6. Rui Rio. Presidente da Câmara Municipal do Porto. Em 2006, Rui Rio concessionou o Rivoli a Filipe La Féria privando a cidade de apoio e espaço para a criação e programação das diversas companhias do Porto. Gastou 700 mil euros por ano a financiar La Féria e em Outubro deste ano admitia, na Assembleia Municipal, que o Rivoli estava sem programação. La Féria, esse fez as malas e foi-se embora, deixando para trás dívidas a fornecedores, trabalhadores e trabalhadoras e, ao que se diz, a completa destruição da concha acústica. Incompreensível.

7. Juventude Socialista. Fizeram do fim dos estágios não remunerados uma bandeira de luta. Escreveram comunicados e prestaram declarações públicas saudando a proposta do Governo, que abria as portas à regulação dos estágios profissionais. Quando a proposta foi a votação, toda a bancada socialista a chumbou. Quem assim se violenta responde, certamente, a valores mais altos, ininteligíveis à razão humana.

8. Ana Jorge. Ministra da Saúde. Há um ano atrás andava o país mergulhado no pânico da gripe A. O plano de vacinação engendrado foi recusado por grande parte da população, que desdenhou esta borla do SNS e bem cedo percebeu que essa história da pandemia trazia água no bico. O nosso contributo à GlaxoSmithKline rondou os 45 milhões de euros. Quem se esforça por dar prendas e não é acolhida com ternura, merece o altar.
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