fernanda câncio e o harakiri da esquerda

Fernanda Câncio juntou-se à multidão que tem explicado ao Bloco de Esquerda porque é que se devia juntar a um governo do PS, ou morrer. Alguns argumentam, todos invectivam e muitos vaticinam: ou no PS ou com o PS, não há lugar nem destino para uma esquerda independente e com um programa próprio senão como ajudante do PS e da sua política.

Esta análise de Fernanda Câncio suscita-me três objecções.

Primeira:
Fernanda Câncio argumenta que só pode haver uma esquerda de governo (o PS) e uma esquerda de protesto (o PCP), e nada mais. O protesto quer-se pequeno e controlado – diz Rui Machete, do PSD, que conta com o PCP para controlar a revolta das ruas porque é um partido confiável. Ora, o PCP é sem dúvida um partido da oposição social à austeridade. Mas é também o partido que falhou a missão histórica de construir uma cultura de convergência e de diálogo com a maioria dos trabalhadores que vota no PS e de os mobilizar para uma alternativa de esquerda contra a economia do desemprego e da precariedade. Foi precisamente por isso que a esquerda se foi transformando e abrindo. A criação e o crescimento do Bloco de Esquerda demonstrou não somente que essa nova esquerda tinha espaço como era absolutamente necessária.

O Bloco venceu onde apresentou e concretizou propostas unitárias adequadas: venceu quando propôs e ajudou a ganhar o referendo sobre o aborto, venceu quando juntou Freitas do Amaral a Mário Soares e Carvalho da Silva na luta contra a guerra do Iraque, vence quando defende a abertura e democracia dos sindicatos ou dos movimentos de jovens precários. Em cada um desses momentos teve melhores ou piores resultados eleitorais, mas tinha razão e essa razão faz o caminho bloquista.

Não, a esquerda da luta social não é só o PCP, é muito mais do que o PCP e, se quer ser vencedora, tem de ser muito mais forte do que o PCP. Pensar que a esquerda não vai hoje muito para além do PCP é ignorar a realidade. E dou um conselho aos críticos: não é pelo facto de ignorarem a realidade que ela deixa de existir.

Segunda:
Escreve Fernanda Câncio que o Bloco tinha espaço político enquanto havia mulheres julgadas por aborto e enquanto era proibido o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Então, diz, podia ser necessário empurrar o PS; mas, uma vez resolvidas essas questões, só resta ir para o PS ou apoiar o governo do PS, uma vez que o Bloco deixou de ter espaço próprio, estando condenado à asfixia.

O que Fernanda Câncio diz é pura ficção: se conhecesse a base activista do Bloco ou os seus eleitores, que são de sectores sociais muito distintos, aprenderia que esta diversidade tem um ponto de união: a força de uma política para a justiça social. E esse é o espaço da esquerda. Enquanto houver desemprego massivo, pobreza, precariedade, corrupção, desigualdade social extrema, exploração do trabalho, discriminação, a esquerda tem uma agenda forte.

Terceira:
Só existe o PS, argumenta Câncio. Só pode existir o governo do PS. A esquerda só pode apoiar o PS e o seu governo. Muito bem, o argumento é claro, mas não sei de que mundo está a falar.
No mundo em que vivemos, o PS propôs e aprovou a subida das taxas moderadoras e a redução das isenções, entregou os hospitais públicos ao BES e aos Mello, reduziu os salários, cortou os abonos de família, diminuiu as pensões, retalhou os subsídios de desemprego e facilitou os despedimentos, nacionalizou os prejuízos do BPN. Foi assim que governou. Importar-se-ia a Fernanda Câncio de nos dizer quais destas medidas deviam ser apoiadas pela esquerda? Todas em pacote? Todas uma a uma? Algumas, para fingir que não apoia as outras? Estas medidas criam desemprego, empobrecem as pessoas, aumentam as rendas da finança, garantem a desigualdade e a corrupção, destroem o Estado social. Serão governo, mas não governo de esquerda.

Há por isso uma imensa candura, ou um imenso cinismo, neste argumento: o Bloco deve deixar de lutar pelos interesses concretos dos pobres e dos trabalhadores porque deve ir para o governo ou apoiar o governo de quem os castiga, mas deve fazê-lo em nome dos pobres e dos trabalhadores. Pode-se propor que o Bloco rompa com o seu programa político, mude de natureza, abandone as suas causas. Mas o que não se pode sugerir é que esse caminho garanta o sucesso porque ele garante apenas o fracasso.

Abandonar o programa socialista é o fracasso. Aceitar medidas anti-populares é trair a base política do Bloco. Isso terá sempre um preço, incluindo um preço eleitoral, porque conduz necessariamente ao desaparecimento: se é para apoiar o PS, mais vale o PS, se é para defender as medidas da economia da bancarrota, mais vale quem as inventou.

A estratégia da multidão dos comentadores, e Câncio enuncia-a com particular ingenuidade, é acabar com o Bloco de Esquerda como partido da esquerda socialista. Depois disto sobraria alguma coisa, mas essa coisa suicidada seria coisa nenhuma.

2 comentários:

Anônimo disse...

Concordo genericamente com a análise, embora não consiga pensar em termos tão estruturais um artigo com esta autoria.
Só queria acrescentar um ponto: o BE é útil e necessário à esquerda, sim, mas só se conseguir apresentar uma alternativa construtiva, e não de mera crítica a tudo o que mexe à sua direita. Sem essa atitude construtiva, perdeu metade dos deputados e quase metade dos votos, incluindo o meu.

Andrea Peniche disse...

Obrigada pelo comentário.
A alternativa de que fala é o programa com que o Bloco se apresentou a eleições (http://www.esquerda.net/sites/default/files/compromisso_eleitoral_0.pdf). Se o conhecer, assim como as 20 propostas que foram apresentadas, perceberá que não são meras críticas. São propostas de mudança na defesa de um governo de esquerda: sem a troika e contra a troika. De esquerda, portanto.

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