Prefiro
o "L’Obéissance est Morte" ao jornal Sol, por isso foi aqui que descobri este artigo de opinião do José António Saraiva (JAS) republicado
de uma Crónica Feminina de 1957. A teoria de JAS é tão fresca e certeira como a
da Geração Espontânea, pegando em evidências míopes e numa retórica
espalhafatosa para fazer valer uma certa versão de família e sociedade que
(sabe-se lá em que raio de manual está descrita) rescende a vingança e a
frustração.
Dizer que foi a “entrada das mulheres no
mercado de trabalho” que desestabilizou a pastoral familiar é já de si balofo,
se não chegasse a ser anedótico: JAS é uma máquina de combinar aleatoriamente
factos sem critério de lógica ou verdade e do seu arrazoado de disparates não
resultam proposições válidas mas, na melhor das hipóteses, uma boa fotonovela
(leia-se o artigo de JAS com a entoação do anúncio do Restaurador Olex). O
“mercado de trabalho” ou o capitalismo, como lhe queiram chamar, em tudo
encontra serventia e foi ele quem integrou as mulheres, fosse para suprir as
faltas pontuais de mãos masculinas, ocupadas em guerras ou sevadas pelas
guerras, ou apenas para ver cumpridas as mesmas tarefas produtivas por menos
dinheiro. O mesmo “mercado de trabalho” que ganha dinheiro com as armas, as
drogas, o ferro-velho, as telecomunicações e as refeições congeladas.
E
algumas mulheres ficaram e fincaram o pé contra os abusos do patronato; outras
regressaram a casa e foram mães a tempo inteiro, lutando contra os abusos dos
mercados que fazem flutuar a procura em função da oferta. E algumas foram
felizes e outras foram tristes mas nenhuma precisou que viesse um padre, um
patrão, um marido ou um fazedor-de-opinião dizer-lhe como fazer as coisas.
Mas
a teoria de António José Saraiva não é só escarninha e maledicente, ela traz
uma agenda que nós, as feministas que convocamos “as mulheres para
queimarem os soutiens, cortarem o cabelo curto, vestirem-se à homem e
usarem pasta à executivo” (passe-se o erro de concordância verbal de JAS),
vimos denunciando há muito tempo: acenando com o fantasma da degenerescência
dos filhos e filhas por falta do abençoado colo materno, em tempo de crise com
fim mais uma vez adiado, discretamente sugere às mulheres que prefiram o
remanso doméstico ao seu lugar nas fileiras produtoras.
A
Leonor Guerra diz bastante mas não o suficiente. Esqueceu-se de dizer que JAS
insulta trabalhadoras e domésticas igualmente, relegando-as ao papel de
cuidadoras sem outro carácter que não o de se consumirem no dar-se; que JAS
infantiliza a capacidade das mulheres de manter relações não passionais com
homens e que, finalmente, maniqueísta e criminosamente, articula a dimensão
profissional das mulheres com as toxicodependências e o suicídio dos filhos.
Era vará-lo.