Conto miserável de dois bancos


“Não sabemos as voltas que a vida dá.” Ele dissera-o. Mas nunca pensou realmente vivê-lo. E dissera também que se aguentava sempre ainda mais miséria. E estava sinceramente convencido que se podia bem aguentar muito mais miséria do que a que ele patrocinava.
Anos volvidos, sentiu que não podia aguentar mais. A miséria vivida aguenta-se de forma diferente do que a miséria contada. A nossa miséria aguenta-se de forma diferente da miséria alheia.
Uma onda de indignação tinha então varrido o seu sustento que se acreditava tão sólido. E, na tormenta, os amigos que sempre lhe valeram escolheram manter uma distância segura. Foi com mágoa que os ouviu dizer que era questão de evitar um “risco sistémico”. Dizer-lhe isso logo a ele… A ele que tantas vezes tinha utilizado a mesma expressão para lucrar…
E chegou assim a esse ponto de não aguentar.
Ela, por sua vez, parecia estar numa estranha sintonia com ele. Negava a evidência da fome. E se ainda não há fome é porque se aguenta ainda mais miséria.
Só que enquanto o negócio dele ruiu, o dela prosperou. Ela que afirmava orgulhosamente a superioridade da caridade face à solidariedade descobriu a solidez inesperada da indústria moral. E onde a solidariedade de classe eventualmente falhou, por uma única vez que fosse, a caridade não falhou.
Quando se encontraram finalmente, Isabel Janota lá deu uma esmola a esse Fernando Ulrico que sentia que já não aguentava.
Ela não se esqueceu de acrescentar a nota moral que vem com a esmola: veja lá, não gaste tudo em bifes.
Ele, ao contrário de toda a legião de pobres esbanjadores que podem aguentar sempre mais, não gastou tudo em bifes. Com a esmola criou um banco. Mais, poupado e empreendedor como sabia ser, não gastou tudo na criação do banco e meteu o resto num offshore.
E, com o seu recuperado estatuto de banqueiro e investidor e a reputação lavada pelo tempo, voltou para junto do seus amigos.
Sabia perfeitamente qual deles era o elo mais fraco para convencer da necessidade de mais uma generosa esmola. E sabia perfeitamente o argumento a utilizar: a situação mudou, se eu não voltar a enriquecer há o perigo sistémico de todos os banqueiros empobrecerem.
Caramba, o argumento era forte, pensou o amigo Estado. E lá abriu os cordões à bolsa e para o fazer fechou serviços, aumentou os impostos, reduziu os salários e fabricou mais pobrezinhos que acabaram até por alimentar tanto a indústria dele como a dela. Eles aguentam, pensaram todos. Sempre aguentaram. E aguentariam ainda mais…
Só que desta vez só pensaram. Parece que os pobrezinhos esbanjadores não gostam de ouvir as verdades. Calar é assim um preço barato para uma fortuna. Não vão eles revoltar-se e descobrir que isso do risco sistémico existe bem para além do argumento inventado para sacar dinheiro. O risco sistémico são eles. E é preciso que não o descubram. É preciso que aguentem.

Um comentário:

José Medeiros disse...

Há uma coisa que se esquece. Não existe a tal solidariedade, pelo menos suficiente.
Pode ser que um dia chegue, ou pode ser que não.
Mas enquanto não chega, é a caridade de várias organizações que dão apoio a tanto pobre. Felizmente.
A esquerda devia compreender isso.
Sou de esquerda, e conheço algumas pessoas que recorrem a essas organizações. Se soubessem o que se diz às vezes, muitas deixavam de votar, ou de ser de esquerda.
Esta compreensão pela vida dos outros, não pode ser desprezada.
Estas pessoas não tem culpa que a esquerda, no fundo, não consiga triunfar nos seus objectivos. Essa humildade de reconhecer isso, é fundamental para uma esquerda que se quer solidária, pois isso vem também da humildade. Incluindo, de reconhecer que se falhou nos objectivos.
Pode ser que esteja enganado...

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