Inimigo do meu inimigo...

O Renato Teixeira, a propósito do debate realizado em Coimbra, com Mariam Rawi, activista da RAWA (Revolutionary Association of the Women of Afghanistan), volta à carga com a sua formulação sui generis sobre a estratégia de combate ao imperialismo e à ocupação norte-americana. Trata-se de um argumento que tem utilizado em diversas ocasiões e que se pode resumir basicamente à ideia de que se deve apoiar o fundamentalismo islâmico pois este tem sido o principal opositor à ocupação imperialista.


Por outras palavras, a política que ocorre fora do contexto mais familiar é sempre resumida a um binarismo em que, neste caso concreto, só existem forças ocupantes e os "mais visiveis e aguerridos" na suposta resistência a estes. Depois, prescrevem-se, à distância, soluções que transferem quadros de análise que se colam apenas à realidade dos países capitalistas avançados. Esta discussão não é, sublinho, sobre vias violentas ou pacíficas para atingir um dado objectivo, mas sim sobre o projecto político subjacente a essas mesmas forças políticas. Esta é uma discussão sobre principios gerais de orientação, mas que se deve enraizar na análise concreta da situação. É por isso que se podem fazer análises diferenciadas sobre o que significa o Hezbolah, Hamas, Taliban e outros tipos de expressões políticas. Para mim não são a mesma coisa, nem actuam em contextos semelhantes, nem reduzo a sua complexidade e significado ao facto de combaterem o imperialismo. Adiante.

Subsiste a questão: deve a esquerda apoiar todos aqueles que combatem o imperialismo e a ocupação, independentemente da caracterização do que estes são, o que representam e que projecto politico defendem para o seu país ou região? Eu acho que não. Esta avaliação tem impactos catastróficos na solidariedade politica (e material) que possamos fazer do exterior, mas tem implicações ainda mais dramáticas para as forças políticas que actuam no interior do Afeganistão e que têm que lidar directamente com os Taliban.

Tendo em conta o autor, é curioso como este argumento é o mais despolitizado possível, parecendo subvalorizar a acção política e ignorar, em última análise, a coexistência de diferentes projectos políticos, antagónicos, os quais, correndo o risco de simplificação, podem ser caracterizados como de esquerda (e progressistas) e de direita (e reaccionários). Este argumento parece ignorar também a história dos trágicos conflitos ocorridos ao longo do último século cujo desenlace foi invariavelmente a tomada do poder por forças autoritárias (na maior parte dos casos com o apoio dos EUA) e a aniquilação (física) das forças progressistas nessas regiões – Iraque, Irão, Indonésia são os casos que me surgem intuitivamente à cabeça.

É possivel, com ou sem ocupação, a convergência de Taliban com a RAWA ou outras organizações progressistas? Obviamente que não, pois o objectivo dos Taliban é de impor o seu projecto político, e o seu ódio à democracia, igualdade e direitos da mulheres e tão grande quanto o ódio aos exércitos de Obama. O caminho é pois outro, mais dificil, mas de fazer com que o projecto político das forças progressistas ganhe influência política e capacidade de intervenção na resolução dos problemas imediatos da população, combatendo o projecto rival talibã que é infinitamente mais bem financiado e implantado.

Quando se fala do Afeganistão é natural utilizar o exemplo do Paquistão, no qual estão presentes ingredientes semelhantes: um Governo corrupto (embora não seja um Estado falhado ou colapsado) associado aos Estados Unidos e a oposição "visível" corporizada pelos fundamentalistas islâmicos. Também aqui intervêm forças políticas progressistas que não se podem obviamente "aliar" com o fundamentalismo que mata tanto quanto a repressão do governo.

O que é que fazem organizações como o Labour Party Pakistan (LPP)? Procuram organizar a luta social e política contra o governo, patrões e fundamentalismos, construindo organizações sindicais e de camponeses. Os fundamentalistas não combatem o patronato que mata os sindicalistas nem advogam melhorias nas condições de vida de quem trabalha. O LPP procura construir uma rede de apoio e de solidariedade que retire a população das mãos dos fundamentalistas e da "educação popular" das Madrassas, na ausência de um estado social. É por isso que fazem constantes apelos internacionais solicitando apoio com vista a poder financiar actividades de solidariedade directa com as populações, como é o caso da ajuda às vitimas da cheias.

Se o Renato tivesse assistido à intervenção da Mariam, teria ouvido em primeira mão o discurso de uma representante de uma organização que coloca como uma das questões principais para a democratização – e já agora da igualdade e emancipação de homens e mulheres - do Afeganistão o fim da ocupação estrangeira. Tal seria a condição para a abertura de uma nova fase de luta política no Afeganistão.

Mas se alguem lhe tivesse perguntado porque é que não fazia unidade na resistência com os Taliban ela talvez respondesse que as tropas da NATO e os Taliban são equitativamente responsáveis por crimes e massacres contra o povo afegão. Que a guerra infinita advogada pelos EUA convive bem não só com um governo corrupto e atrelado aos seus interesses, mas também com a integração neste de senhores da Guerra, a chama aliança do Norte, que não são diferentes dos Taliban. Que as suas activistas não podem se deslocar pelo país sem estarem cobertas e acompanhadas por um homem, ou que talvez nem falariam com ela, nem a considerariam interlocutora simplesmente por ser... mulher. Isto aplica-se quer ao Governo que supostamente traria as liberdades das democracias ocidentais, quer aos Taliban.

A “invenção de uma terceira trincheira” não constitui nenhuma abstração niilista pois ela já existe. Negar os taliban não é nem “cumplicidade, ignorância ou cobardia”, mas alicerça-se numa análise do que eles representam. Prefiro, por isso canalizar a minha solidariedade política (e quem sabe, recuperar a velha tradição de solidariedade material) para os projectos progressistas que defendem valores de democratização e emancipação social. Para mim uma coisa é certa: o inimigo do meu inimigo não é necessariamente meu amigo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário