O Princípio da Discricionariedade

Foi-me negado recentemente um requerimento para passagem ao regime de dedicação exclusiva, um regime que implica um aumento salarial e que depende da participação do requerente em "projectos de investigação científica e ou desenvolvimento experimental" (em mestrados, doutoramentos ou outros) bem como, obviamente, a sua dedicação exclusiva à entidade à qual requer a transição.

Até agora, nada que interesse particularmente o estimado leitor. O que é particularmente interessante no caso e que o des-singulariza é o facto de a decisão ter sido tomada com base numa "competência inserida no âmbito da discricionariedade administrativa". Ora, o conceito da discricionariedade administrativa existe para compensar regulações normativas que, tendo em conta a generalidade dos casos, podem traduzir-se em injustiças para determinados casos específicos. É uma espécie de liberdade de interpretação do espírito da lei.

É um conceito que admite a incapacidade de adequação das normas a contextos específicos e que confia na boa fé da administração pública em aplicá-las de forma a evitar injustiças. Até aqui, dou de barato, tudo certo. Acontece que este princípio (que, confesso, desconhecia) foi invocado para aplicar a letra da lei que não se adequava ao caso específico. Explico: sendo o segundo ciclo do ensino superior geralmente de dois anos, 50% do tempo costuma ser dedicado a uma parte lectiva e outros 50% são dedicados à elaboração da tese sendo que só a segunda metade encaixa no conceito de "projecto de investigação". Neste caso, a discricionariedade administrativa deveria ser aplicada apenas quando esta norma geral não compreendesse uma determinada situação (por exemplo, quando, logo no primeiro ano de mestrado, a parte lectiva serve para iniciar a dissertação). O que era o caso.

Ora, isto levanta algumas questões:
1) Qual o grau de conhecimento destes instrumentos por parte dos funcionários a quem cabe aplicá-los?
2) Que grau de compreensão têm os funcionários públicos dos instrumentos que têm ao seu dispor?
3) Que mecanismos efectivamente eficazes (excluo, portanto, o livro de reclamações) estão ao dispor dos cidadãos que estão sujeitos a estas decisões?
4) Fará sentido que um determinado grupo de pessoas que estão, inevitavelmente ,numa posição de poder disponham de um mecanismo que legitima o exercício da discricionariedade?
5) Que tipo de fiscalização poderá ser feita em relação a este tipo de instrumentos?

Não valerá a pena discorrer sobre a forma como a burocracia atribui poder despótico que estará bem presente para quem já recorreu a uma qualquer repartição pública mas um instrumento como este, ainda que bem intencionado, produz, inevitavelmente, situações de discricionariedade para além daquelas que estavam na mente do legislador. Isto, digo eu que estou piurso.

Um pequeno passo para o homem, um grande passo para a humanidade

A resolução do BE para que o governo mude os critério de selecção de dadores de sangue, impedindo uma grave discriminação com base na orientação sexual, foi ontem discutida na comissão de Assuntos Constitucionais, Liberdades e Garantias e teve a concordância do PCP, Os Verdes e do PS. Chama-se a isto bom-senso. É extraordinariamente discriminatório e ignorante indagar sobre a orientação sexual dos dadores no questionário a que se é submetido. Não há uma fundamentação científica ou mesmo legal que justifique a perpetuação deste critério. Espero que, a ser aprovada em plenário, esta resolução tenha consequências também para o presidente do Instituto Português do Sangue (que defendia convictamente não se tratar de uma discriminação, mas uma necessidade técnica para garantir a segurança do sangue dado aos doentes). A competência é um critério para se ocupar este lugar, certo?

Está na hora da pausa kit-kat

O corpo de Cristo

Assim muito grosso modo, entendo a indemnização de um corpo lesado e fodido como uma combinação única de economia corporal, material e moral*. Avalia-se a utilidade de um corpo e determina-se o seu grau de incapacidade, que por sua vez é traduzido em dinheiro através de um código semi-convencionado que articula dignidade humana com curriculum salarial. Se há pouco mais de uma década uma vida valia o preço de um carro médio, hoje ronda os 50 mil euros, isto é, um carrão - o que me deixa francamente mais descansado. Chassis à parte, parece que ainda assim, tal como há merdas e merdas, também há vidas e vidas. Velhos, pobres e desempregados não são propriamente gente valiosa e eu até adivinho porquê: não se lhes pode dar uma mão que querem logo um braço (que só não perderam nas obras - extravagância estética de pedreiro - precisamente porque são velhos, pobres e desempregados).

Ora vem isto a propósito das indemnizações atribuídas aos doentes cegados no Hospital de Santa Maria. É evidente que negligência e responsabilidade médicas são matéria jurídico-fininha que não sou propriamente competente para insultar (excepto no dossier corporativismos periciais, que ainda ontem recenseei na padaria do Pingo Doce). Fora dos tribunais, consensualizou-se uma indemnização política de 246 mil euros para o caso - presumo - mais grave. É sempre pouco, mas parece justo. E digo indemnização política porque é episódio particularmente vigiado pela imprensa, pelo que ganha os respectivos contornos e cuidados mil. Queira Deus que a coisa - no hospital, no trabalho ou na estrada - se exporte para as dezenas de corpos fodidos que chegam diariamente aos tribunais sem porra de culpa nenhuma. Ainda ontem rezei um Pai-Nosso e uma Salve-Rainha à Axa, Liberty, Fidelidade-Mundial, Império-Bonança, Zurich, Allianz e Tranquilidade. A ver que tal.

A visita de Bush e Clinton ao Haiti

As más linguas dizem que Bush Jr limpa a mão na camisa do Bill Clinton após ter cumprimentado um autóctone. Deixo as interpretações à vossa consideração. A partir do minuto 00:45.

A China chega a Kalmar (1)

A recente aquisição da Volvo por parte de uma quase desconhecida empresa automóvel chinesa - a Geely International - poderia suscitar diversos tipos de abordagem. A primeira é feita pelo Editorial de hoje do Público. A imagem da Volvo tinha subjacente uma preocupação com a inovação tecnológica e com a segurança. Assim o que se intui nesse editorial é a preocupação (legítima) de que a associação da Volvo a uma empresa que é conhecida pela produção de automóveis baratos e poluentes, que teve que adiar a sua entrada no mercado europeu e norte-americano por causa do incumprimento de standards mínimos, possa toldar definitivamente a cultura organizacional da organização Sueca. A questão final colocada é esta «Ficam em todo este processo, no entanto, uma dúvida e uma nostalgia: serão os Volvo do futuro automóveis requintados e "amigos" dos condutores como o foram na era dos suecos?»

Um outro enfoque, que me é simpático, seria um (certo) saudosismo em relação às experiências de «Democracia Industrial» levadas a cabo nas fábricas de Kalmar e Uddevalla. Aparentemente esta imagem de marca não ficou na retina daqueles que se preocupam com o futuro da Volvo, mas para mim é sem dúvida o aspecto mais interessante. Como proceder a uma organização da actividade produtiva, num sector altamente exposto à competição no mercado internacional, que mantivesse uma elevada produtividade, mas que criasse uma cultural real de participação e de envolvimento dos trabalhadores? Kalmar era um exemplo de «Democracia Industrial» mas a opção da maioria das empresas norte-americanas e europeias foi a da transplantação dos modelos Toyotistas. Em termos tecnológicos ficamos com um neo-taylorismo em que a intensidade do trabalho é dramaticamente intensificada. A nível da democracia organizacional, implanta-se um simulacro de participação, que captura o saber tácito dos trabalhadores mas aos quais não confere qualquer poder relevante nas principais tomadas de decisão.

Essas experiências têm sido paulatinamente abandonadas. Convém lembrar que os anos 70 foram o período de maior força da classe trabalhadora organizada, que não reivindicava apenas mais salário, mas que procurava interferir nas modalidades de organização produtiva, nas competências e qualificações dos postos de trabalho, na crítica ideológica do modelo produtivo taylorista-fordista e das suas consequências nos corpos e nas mentes dos trabalhadores. Desde então o clima ideológico mudou e essa «crítica social» recuou dramaticamente.

Dedicarei um outro post à Geely e à China, ao significado desta compra e à emergência desta potência económica mundial, que está no centro do actual processo de acumulação capitalista.

Por uma nova epistemologia


Pequena homenagem a Pierre Bourdieu

Abrir a boca para falar:

«Entendo a atitude pós-moderna como a de um homem que deseja uma mulher muito culta e sabe que não lhe pode dizer "Amo-te loucamente" porque sabe que ela sabe (e que ela sabe que ele sabe) que essas palavras já foram escritas por Barbara Cartland. Mas há uma solução. Pode dizer: "Como dizia Barbara Cartland, amo-te loucamente". Nesse momento, tendo evitado uma falsa inocência, tendo dito com clareza que já não é possível falar inocentemente, terá dito no entanto o que queria dizer à mulher: que a ama, mas que a ama numa época que perdeu a inocência. Se a mulher aceita esta táctica, terá recebido de qualquer forma uma declaração de amor. Ninguém se sentirá inocente, os dois terão aceite o desafio do passado, do que já se disse, que não pode ser eliminado, os dois participarão com prazer no jogo da ironia consciente... Mas os dois terão mais uma vez conseguido falar de amor.»

Umberto Eco apud Charles Jenks, «Que és el posmodernismo?» in Los Cuadernos del Norte. Oviedo, ano VIII, n.º43, p.36 apud Francisco Louçã (1994), A Maldição de Midas. A cultura do capitalismo tardio. p.164-165. Lisboa: Edições Cotovia.

Abrir a boca para comer:

Who let the dogs out?


Francisco Oneto indignou-se aqui com as claques de futebol e, muito particularmente, os seus comportamentos porque "se arrogam o direito de fazer da agressão generalizada e da violência a marca da sua reles submissão a ideais de estupidez agonística exacerbada". Certo.

Zé Neves irritou-se aqui contra Fancisco Oneto, ou melhor, contra o seu tom paternalista e contra o subtexto do seu post que, no entender de Zé Neves revela uma posição sobranceira de uma certa intelectualidade que só sabe lidar com a ordem e que apenas dentro dela reconhece a civilidade e a humanidade. Certo também.

Aceito que, logo à partida, a antipatia nutrida pelo desporto pode inquinar a discussão e amplificar sentimentos de indignação. Ainda assim, compreendendo os dois pontos de vista e, acima de tudo, chamando a atenção para os perigos de qualquer um dos dois (por um lado de desumanizar e, portanto, não compreender os comportamentos desta gente e, por outro, de relativizar e, portanto, desculpar os comportamentos desta gente). É claro que, nem Francisco Oneto admitiria que não os considera humanos nem Zé Neves admitiria que desculpabiliza os comportamentos mas serão essas as consequências se levarmos tudo a eito chamando selvagem a tudo o que mexe ou se equipararmos o post de Oneto aos comportamentos das claques.

Ora, neste, como noutros casos, o segredo está na massa E no molho. O perigo de tratar esta gente como se fossem cães de caça não pode ser mais determinante que o perigo que os tratar como vítimas da sociedade. E vice-versa. Mas, a esse respeito, diga-se que o mesmo princípio pode ser aplicável a qualquer crime.

Isto é, portanto, gente que merece "regime de reclusão [com] trabalho compulsivo em prol da comunidade"? Não. Quando o nervosismo e a indignação resvalam para as ideias anti-democráticas, estamos mal. É gente que merece ser presa? Alguns certamente que sim e a impunidade com que destroem, agridem e ameaçam é absolutamente incompreensível. Tendo isto em mente, em relação aos restantes, não é nada que uns bons tabefes em casa não resolvesse.

(D)evolution Summit 2010: Os Benefícios da Cultura



Na próxima semana, os Ministros da Cultura da UE vão a Barcelona participar no encerramento do Fórum Europeu de Indústrias Culturais, intitulado "A economia da cultura".

"Visto o enfoque inequívoco que este título sugere, a comunidade criativa e a sociedade civil, apesar de não terem sido convidadas para o evento, organizam três dias de actividades para mostrar a cultura que propõem para a era digital: um modelo de cultura que beneficie todos, cidadãos e criadores, um modelo de cultura que incentive a criatividade e não apenas as receitas, e sobretudo que não ataque a internet nem as novas possibilidades que a Rede oferece para os criadores e a sociedade em geral. A cultura não é só indústria do entretenimento audiovisual, é muito mais: é a nossa herança cultural, são os criadores e é a cidadania".

Mais info no site da (D)Evolution Summit 2010, a "cimeira cidadã para abrir as mentes dos ministros", de 29 a 31 de Março em Barcelona.

Old news, new news

Chamo a atenção para o debate a propósito do Orfeão de Leiria e do Grupo de Teatro o Nariz que continuo aqui mesmo depois de o post ter sido engolido.

Qual Stout, qual quê...

Formação Gerir com 6º Sentido (Curso Financiado)

A APEE apoia mulheres empreendedoras com 6º sentido na concretização do seu projecto ou ideia de negócio, através de:

- 192h Formação pós-laboral
- 80h Consultoria

Inicio- 26 de Março (Lisboa)
28 de Março( Loulé e Olhão)

Horário- 9:30 – 17:30

condições de acesso:

Mulheres desempregadas

Sôdade... Sôdaaade...

Ai minha querida China, que saudades de quando eras o farol que guiava este mundo. Que saudades de quando só massacravas teocratas. Que saudades dos tempos em que eras pura e imaculada, antes de te deixares corromper pelo capitalismo.

A tribo do Professor Galamba


«Na verdade, todos estes direitos estão imanentemente limitados pela reserva do possível, ou pela reserva do financeiramente possível.»

Eu quer-me parecer que Isabel Moreira não percebeu puto da conversa. Ou se percebeu serão com certeza demasiados cafés com o Professor Galamba. Será que é preciso tanto espalhafato pseudojurídico (pseudo, repito) para demonstrar por A+B que esta coisa dos direitos não é providência divina nem está escrita nas estrelas? E agora? Não sendo reclamáveis em sede judicial (discutível) deixam de ser disputáveis em sede política? Alegar a «reserva do possível» para cortar no subsídio de desemprego é manobra manhosa e cobarde. E para já contenho-me nos adjectivos. Por mim, Isabel Moreira acaba de merecer uma taça (a mais feia que arranjei). Sobretudo pela fidelidade ao Professor Galamba: só mesmo isso justifica o que escreveu.

PS: Entretanto o Zé Neves já lhe tratou da saúde. Nuno Ramos de Almeida também.

Adenda: Segundo a Tribo do Professor Galamba este gajo é um zizeko - wait for it - guevarista. Podeis pasmar.

Poesia

"Governo alemão não descarta intervenção do FMI na resolução da crise grega"

Um colega de trabalho chamou-me a atenção para este título e, de facto, sinto-me de novo no ensino básico inundado por uma infantil felicidade de descobrir vários sentidos de uma única frase poética.