Declaração de Interesses. Grande parte da minha socialização política ocorreu no movimento estudantil. A primeira Queima das Fitas (ainda na Faculdade de Economia do Porto) foi passada a colar cartazes da campanha “Propinas não são Solução” com membros da Associação de Estudantes de Belas Artes (na qual se incluia uma das ilustres participantes deste blog). A mudança de curso para Sociologia levou-me a uma Faculdade de Letras com mais “potencial” de intervenção. No ano lectivo de 1997/98, a leitura obrigatória era a Lei 113/97 de 16 de Setembro, a nova lei de financiamento do Governo Guterres. (Lembram-se que ele tinha revogado a lei das propinas de Cavaco Silva e que tinha prometido que não voltaria a instituir o seu pagamento?) Nesse ano boicotámos as propinas, e a trintena de estudantes que restou lá teve que as pagar no fim do ano sob pena de ver os seus actos curriculares congelados.
Passei muito tempo naquela faculdade, muito pouco do qual em sala de aula. Fiz parte de duas listas vencedoras para a AEFLUP, mas também de duas derrotadas; pelo caminho passei pelo Jornal e Assembleia de Representantes da Faculdade, pelo Senado e Assembleia de Universidade do Porto. Mas os debates e activismos não eram apenas sobre política educativa. Das melhores memórias que tenho é o facto das reuniões inaugurais do primeiro grupo LGBT Universitário do Porto (Nós - Movimento para a Liberdade Sexual) terem sido nas salas da AE; ou o facto de no próprio dia da Invasão do Iraque (20 de Março de 2003) termos conseguido juntar 300 estudantes à porta da Faculdade para uma concentração de protesto.
O meu último acto de movimento estudantil foi a invasão “simbólica” do Senado da UP em finais de 2003. Digo simbólica, não por recear as conotações fortes associadas ao termo, mas porque a decisão de fixação do valor das propinas era um facto consumado e o nosso protesto não teria consequências efectivas. Mas não podiamos aceitar simplesmente que a decisão tivesse sido tomada nas nossas costas. A sua fixação foi concertada na Secção Académica do Senado, único orgão onde não havia representação dos estudantes. A autonomia das unidades orgânicas da UP impunha que fossem os Conselhos Directivos a tomar essa decisões. Estas reuniões realizaram-se convenientemente durante o mês de Agosto para garantir uma fraca participação estudantil. Se não fosse por esta “esperteza saloia” talvez a história tivesse sido diferente. Mas não foi. Não tenho boas memórias do ex-Reitor Novais Barbosa, nem do seu antecessor Alberto Amaral.
O artigo da Sandra Monteiro (recomendado pelo Miguel Cardina) condensa bem as alternativas em presença que justificaram as movimentações estudantis ao longo das ultimas duas décadas. E subscrevo o argumento de que perdemos a luta, mas que foi por causa dela que a implementação da Universidade S.A. demorou muito mais tempo do que seria expectável.
Retomando o fio à meada. Eis-nos chegados ao ano de 2009. Passaram mais de quatro anos desde a última manifestação nacional, que ficou conhecida pelas piores razões. Entretanto, de lá para cá, assistimos à aplicação de Bolonha e do RJIES, mas sobretudo a uma alteração paradigmática – de Acção Social Escolar para Empréstimos Bancários, de Gestão Democrática para uma outra “Profissionalizada”, do ensino tendencialmente gratuito para o eminentemente proibitivo. Três corolários: re-elitização da população estudantil (aqui, via 5 dias, embora fosse necessário um estudo mais aprofundado sobre esses efeitos); aumento da investigação cientifica mas "descartável"; fragilização dos meios das Universidades enquanto instituições de serviço público (subfinanciamento crónico que as empurra para o modelo de Fundações, sobrecarga e precarização do próprio corpo docente).
Mas para além destas consequências estruturais subsiste um outro problema – o da memória. Uma das grandes lacunas do movimento estudantil foi sempre o da memória histórica de lutas passadas. Embora exista uma continuidade das AAEE, o mesmo não se pode dizer da história concreta do movimento estudantil, das pessoas que dele participaram e das acções por ele realizado. Em 1997 sabia-se pouco sobre a guerra das propinas de 1992-94. O mesmo acontecia em 2002 sobre 1997. Quem se mantinha ainda ligado à Universidade procurava de alguma forma transmitir essa memória, mas é claro, de forma sempre limitada. Em quatro anos, várias novas gerações entraram na Universidade sem terem sido confrontadas uma única vez com discussões sobre o estado do ensino superior, ou das (não) razões para a participação numa manifestação.
Por isso acho que estes 4000 são boas noticias. É precipitado dizer que se trata de um ressurgimento do movimento estudantil, num momento em que ele seria tão importante. Para isso seria necessário muito mais do que o regresso (tímido) a expressões públicas de protesto (isso valeria um outro post mais extenso do que este). Mas a interpelação fica.
5 comentários:
Caro Hugo
partilho parcialmente a análise que fazes e como estou a aproveitar uns miseros 10 minutos antes de voltar ao trabalho tentarei expor de forma resumida algumas questoes que o teu post levanta (confesso que nao tive tempo de ler o artigo que referencias):
1)a luta foi perddida apenas de forma parcial. Sei que nao é do teu tempo, nem do meu, mas as lutas iniciais contra as propinas foram um dos factores determinantes na queda, sem glória, do governo de Cavaco Silva. É preciso nao esquecer também que nessa altura preconizava-se um modelo de propina progressiva, em que o valor final seria muito mais alto (mais exclusivo ainda) do que a agora aplicada.
2) a luta foi perdida - parte II. A lei de financiamento do ensino superior nao contemplava apenas o aumento das propinas, como bem sabes. A prescriçao económica que se adivinhava creio (já nao ando muito bem informado) nao chegou a ir avante e esse facto deve-se, apenas e exclusivamente, à contestaçao estudantil. este é o exemplo que encontro, mas seguramente haverao outros.
3) as lutas pequeninas que nao existem mediaticamente. o papel fundamental que muitas AEs desenvolveram, desenvolvem e desenvolverao (desculpa lá o tom épico) prende-se muito com os problemas do dia-a-dia. Essa é a unica forma de conseguir uma mobilizaçao clara e inequivoca dos estudantes em lutas de âmbito mais geral. O trabalho dos estudantes nos Conselhos de Acçao Social, o gabinete de Acçao Social que a AE de que fazias parte tinha, no meu caso concreto, a luta por abertura das instalaçoes à noite e contra a revisao do plano de estudos, tudo isso sao tarefas, compromissos que significam pequenas grandes vitórias. Nao sao mediáticas, é verdade. Mas eu sinto particular orgulho nos dias de hoje, quando passo pela FAUP e vejo que a Biblioteca passados 11 anos da nossa luta continua com horario acrescido. Provavelmente, a minha leitura é demasiado sindicalista, mas também nao me preocupo muito...
Para concluir, nao ganhámos as grandes lutas, é verdade, mas as pequenas batalhas que fomos vencendo, as vitórias que fomos conseguindo e a importância que tais conquistas têm protagonizado na vida de milhares de estudantes fazem me reafirmar que o unico caminho é a luta.
E a memória, essa, nao me preocupa, os estudantes têm sempre, melhor ou pior, conseguido dar provas da sua eficácia organizativa, do seu poder reivindicativo...
Olha, eu tenho direito ao café, por isso quero beber um café e depois não o pago, 'tá? É que, sem café, fico com dores de cabeça e não consigo trabalhar.
O MDA ironiza com alguma coisa que nos transcende. Talvez o café seja o "curso superior" e a propina o seu pagamento... mas gajos da marinha grande que dão aulas em leiria não se pode confiar.
Mas Rafael, concordo com o que disseste, das pequenas e médias vitórias. e só assim é que se criam dinâmicas fortes nas faculdades. E na FAUP fizeram-se coisas muito boas, e também na FLUP, em que estive, e nas quais a Angela teve um papel muito importante. Mas acho que o argumento da derrota global subsiste. ganhámos em 92-94, e depois a resistência foi esmorecendo paulatinamente até o desenlace em 2004. Mas não acho que nada tenha valido a pena, pois, como disse, de outra forma a neoliberalização da faculdade teria acontecido em 1992 e não em 2004. foi extremamente importante.
A memória preocupa-me em termos académicos e políticos. No primeiro caso pois poderia haver um centro de doumentação ou de memória do movimento estudantil. Se as AAEE, ENDA´s e afins não o fazem a Universidade poderia fazê-lo. Em termos políticos é aquela máxima, se não conhecemos a história, estamos condenados a repeti-la...
A propósito de uma Associação de Estudantes de Belas Artes (UP), diga-se muito original na sua rebeldia, e de um cartaz que dizia Propinas não são solução, bom... da Queima das Fitas não me lembro, mas ainda para aqui tenho o pincel dessas noites de colagem de cartazes e a memória das discussões em torno do Mau Estar dos Universitários.
Aos que não sei por onde andam e que por isso não vejo há muitos anos, um abraço, cheio de cola!
Gervásio! Que é feito, pá? Sei por onde andam alguns... E noutro dia vi o Espírito no metro! Falo-te pró mail. Abraço.
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