Rocky Balboa contra os espartanos


Rocky Balboa é um underdog. (...)  Rocky apanha, apanha, apanha até aos limites da capacidade humana e depois faz despertar em si uma força interna avassaladora. Por isso, a história das vitórias e derrotas de Rocky é o exemplo acabado do conto de fadas desportivo contemporâneo.
Assistindo aos Jogos Olímpicos, parece-nos natural deixar-nos embalar por essa mesma nostalgia de conto de fadas ou então sentirmo-nos desiludidos por já não haver boas estórias de underdogs. Talvez os tempos não estejam para isso. Talvez seja só a nossa atenção dispersa e memória selectiva que nos atraiçoa. Mas, olhos postos no jogo de basquetebol, sonha-se secretamente que a selecção da Nigéria derrote as estrelas da NBA.(...)
Como é óbvio, a atracção pelo underdog tem implicações políticas. Fosse o fenómeno transparente, universal e absoluto e a luta pela hegemonia política dependeria em grande medida de conseguir fazer passar o seu lado por underdog. Mas não será assim tão fácil. Houvesse uma ligação directa entre a atracção pelos underdogs desportivos e o activismo social e político feito do lado dos mais desfavorecidos e o mundo seria diferente. (...)
talvez o “underdogismo” fique reduzido mais a um pecadilho privado do que a uma virtude pública. Talvez seja apenas uma ingenuidade que não acaba nem sequer com a consciência que os contos de fadas não têm bela sem senão, que está sempre ao virar da esquina do salutar apoio dos underdogs a menos salutar cedência à lógica da competição e à construção de heróis, que a imagem simpática do nosso underdog é um pequeno mito e que muitas vezes, na realidade, este é apenas um topdog falhado.
O romantismo da atracção pelo underdog, por mais ingénuo que seja ou por mais cantos obscuros que possa insinuar, é ainda assim mais simpático que outras formas de se colocar face ao desfavorecido. (...)
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Rocky Balboa é um underdog. Mas a sua estória de underdog não conseguiu escapar às malhas tristes da propaganda nacionalista que invade o desporto. O conto de fadas desportivo conta. E, afinal de contas, Rocky é um herói americano. É assim que no quarto filme da saga é intérprete de uma narrativa que ainda hoje parece ser a que enquadra tantos olhares sobre os jogos olímpicos.
De um lado, o esforço individual, o sonho americano tornado olímpico. O querer que é poder. A Psicologia positiva do heroísmo e o individualismo do herói. Do outro lado, a máquina colectiva da potência estranha que maltrata as suas crianças para obter resultados, sempre suspeita de utilizar o doping em nome do orgulho nacional. Um colectivismo sem rosto e uma ameaça que paira.
Onde ontem era a URSS, hoje é a China. E, entre o fascínio e a repulsa, conta-se outra vez a história de Atenas e a sua democracia contra Esparta e a sua disciplina férrea. E, apesar de tudo, os espartanos eram gregos. Já os chineses…
Improvável ateniense, Rocky Balboa emerge novamente como o símbolo desejado para derrotar o frio militarismo. A lógica do underdog parece acabar sobredeterminada pela narrativa da democracia ocidental. De medida de pequenas ou grandes vitórias de pequenas ou grandes nações ou de máquina de fazer estórias de underdogs, as olimpíadas transformam-se noutra coisa, numa fábrica de medos.
Rocky está sozinho contra os espartanos de todos os tempos. Apanhando, apanhando, apanhando. Para dar luta, necessitará de ir buscar aquela força interna. Encontra-la-á no Rocky símbolo do american way of life ou no underdog?

Publicado no Correio da Cidadania

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