O Contrato

Até sempre, Miguel!

O armário e o elevador

O armário e o elevador

José António Saraiva é perspicaz. Consegue topar um gay num elevador pelo ângulo de inclinação da cabeça: “pelo modo como coloca os pés no chão, cruza as mãos uma sobre a outra e inclina ligeiramente a cabeça, percebo que é gay”.

José António Saraiva é também um magnânimo António Barreto de elevador: a partir dessa observação explica-nos a sua certeza que o número de gays está a crescer, concede até que haja “gays que nascem gays”, mas sabe que a explicação residirá mais no “efeito multiplicador” que “funciona como propaganda” do “assumir da homossexualidade por parte de figuras públicas”.

Substituiu assim a tese antiga de que os homossexuais andavam a “recrutar” crianças desviando-as sexualmente do seu caminho natural pela tese de que as novas armas de recrutamento são a propaganda pelos famosos e a pressão social: “alguns jovens que não têm inclinações evidentes acabam por ser atraídos pelo mistério que ainda rodeia a homossexualidade e pelo fenómeno de moda que ela assumiu em determinados sectores (…) Mas também há gays que se tornam gays – por influência de amigos, por pressão do meio em que se movem.”

A Sociologia de olhómetro de José António Saraiva complementa-se ainda com uma fina Psicologia que chega onde ninguém mais chegou: “o fenómeno da homossexualidade como forma de contestação deste modelo de sociedade em que vivemos, de afirmação radical de uma diferença (…) nunca foi abordado”. Assim, à tese das novas formas de recrutamento gay junta-se a ideia de que a homossexualidade é uma forma de contestação pós-contestatária em que a “exposição da homossexualidade” se tornou “um sinal exterior de revolta”. Os desavergonhados herdeiros do Maio de 68 terão trocado os posters do Che pela fornicação com alguém do mesmo sexo. São caminhos teóricos tão originais que não se percebem bem as consequências sociais de tal transformação do campo contestatário. Talvez se assista em breve ao surgimento de um black block com tiques efeminados ou talvez isso possa apenas ter lugar enquanto um pesadelo de arquitecto-jornalista.

Seja como for, o quadro de valores deste fenómeno está definido: o niilismo homossexual. O raciocínio é simples e vem na mesma linha brilhante de reformulação do preconceito (antes a conversa do recrutamento agora a conversa da ameaça à espécie pelo fim da reprodução sexual). Esses gajos assim não se reproduzem e porque não se reproduzem não têm utilidade e por estas duas razões não terão um sentido de futuro (“a opção gay é uma forma de negação radical: porque rejeita a relação homem-mulher, ou seja, o acto que assegura a reprodução da espécie. Nas relações homossexuais há um niilismo assumido, uma ausência de utilidade, uma recusa do futuro. Impera a ideia de que tudo se consome numa geração – e que o amanhã não existe. De resto, o uso de roupas pretas, a fuga da cor, vão no mesmo sentido em direcção ao nada.)”

Lá está, eles vestem-se de preto. Eles vestem-se de preto? Ou será que é ele que se veste de preto. No elevador alguém parece ter o efeito violento de um black block em dia de manifestação. Em direcção ao nada…

José António Saraiva está fascinado pelo fenómeno que descobriu. Percebe-se que foi por esse interesse sócio-psicológico profundo e apenas por ele que não terá tirado os olhos do jovem vestido de preto que se cruzou com ele naquele elevador.

Vítor Gaspar mente vagarosamente

Os sectários

Os sectários armam-se cegamente de uma certeza e sentem-se ameaçados quando alguém a questiona. Cada pergunta ou crítica é um golpe que há que fazer pagar caro. Defender a sua dama é desqualificar o/a crítico/a: há sempre um diletante ou um traidor, em acto ou em potência, naquele que não pertença à agremiação. Vivem como peixe na água numa cultura de anti-debate político em que haja claques mais do que argumentos.

Os sectários olham para quem está perto de si como se estivesse ao serviço do inimigo e sempre pronto a destruir o que eles abnegadamente constroem.

Os sectários estreitam a camaradagem ao tamanho da sua mesmidade.

Os sectários são tão inseguros quanto fervorosos. Duvida-se que tal orgulho identitário resista às encruzilhadas do tempo, que uma certeza assim cultivada seja sólida, que uma unidade assim construída possa ser cimento promissor.

Os sectários, como as ervas daninhas, crescem espontaneamente nas organizações. Há mesmo quem diga que o sectarismo é a doença infantil da militância. Assim, em princípio, não seria por demais perturbador que o sectarismo fizesse parte da flora organizativa. Só que a sua força tende a tornar dominante o sectarismo enquanto princípio de exclusão.

A diferença está na atitude que se mantenha perante ele: pode-se ensaiar desconstruí-lo de diversas formas ou procurar protegê-lo já que os sectários serão militantes exemplares ao serviço das direcções. Isto ainda que o instinto de sobrevivência aconselhasse a fugir dele já que uma organização que cresça à sombra do sectarismo isola-se e afasta outros/as.

Os sectários sentem-se os melhores militantes do mundo. E no entanto…

Não há antídoto seguro para o sectarismo. Apenas lutas permanentes pelo reinventar da criatividade militante e dos agenciamentos colectivos.