"No regrets"

Na segunda parte do inquérito de hoje, o Sr. Blair recorreu à estratégia de devolver perguntas à Comissão. A sua sugestão é que, mais do que olhar para os acontecimentos de 2003, é importante desenhar um cenário para os dias de hoje, sugerindo que, muito provavelmente, o Iraque ombraria já com Irão no capítulo das armas de destruição maciça. As provas da sua existência, de acordo com o antigo primeiro-ministro, estariam documentadas pelos Serviços Secretos mas não soube apresentá-las.
Confrontado com a pergunta sobre se deveria ter consultado o seu Governo mais aprofundadamente sobre a invasão, afirma que, dadas as circunstâncias actuais, teria consultado o seu Governo, mas que, a partir de certa altura, a decisão não poderia ter sido adiada face à urgência de George Bush e do Governo americano em prosseguir com o plano de “debaathificação” (afastamento dos antigos membros do partido Baath do Governo Iraquiano).
Num balanço geral, e demonstrada pela Comissão a real falência das expectativas colocadas pela Coligação ao povo iraquiano, reafirma a continuação do trabalho político em torno da constituição iraquiana, bem como a necessidade de permanecer junto do povo iraquiano e acompanhar a reconstrução das suas instituições. Relembra que quem matou e defraudou as expectativas do país não foram as forças da Coligação, mas os terroristas e os sectários, que continuam a fazê-lo, contra todos os esforços de pacificação.
A sua afirmação de que os Iraquianos têm hoje melhores condições de vida do que tinham antes da invasão, nomeadamente ao nível da higiene e cuidados de saúde que fizeram baixar drasticamente as taxas de mortalidade infantil no território, mereceu uma resposta seca do Presidente da Comissão de Inquérito, Sir John Chilcot: “Isso ainda está por provar.”
Para encerrar a sessão, Sir Chilcot pergunta que lições tirou deste processo e se tem alguns arrependimentos, em face do sofrimento e da gratidão de familiares, amigos e cidadãos pelos militares que pereceram ao serviço desta guerra, muitos deles presentes na sala.
- “No regrets.”
Sobre os militares desaparecidos no Iraque e as suas famílias não se pronunciou. Entretanto, na rua, centenas de manifestantes começavam a agrupar-se. Espera-se novo capítulo e louva-se o ar angélico do soldadinho da paz.

Mr. Blair sobre o Iraque


O Sr. Blair está em directo em todos os canais anglófonos perante a Comissão de Inquérito sobre a invasão do Iraque em 2003.
Tardava esta comissão de inquérito e há muitas expectativas sobre ela, agora que os documentos são públicos e novas ilações se tiram dos relatórios e depoimentos de centenas de conselheiros, juízes e intervenientes de diversa natureza.
Destas primeiras duas horas de inquérito, gostava de destacar alguns pontos:

- Blair não se desliga do argumento das WMD (Weapons of Mass Destruction) como móbil principal para a intervenção do Reino Unido, lembrando que depois do 11 de Setembro os critérios de avaliação do risco se alteraram.
- De acordo com a sua avaliação – e ao contrário da opinião das Nações Unidas, e em particular de Koffi Anan, com quem reuniu para discutir a autonomia dos países das Nações Unidas em matéria de intervenção militar em países terceiros – a resolução 1441 que determinava os deveres do Governo Iraquiano era suficiente para justificar a invasão face à suspeita da existência de WMD.
- Perante as reticências das Nações Unidas, Blair assume que a resposta americana se mostrou a mais interessante à posição britânica e reitera a posição tomada em 2003.
- Blair assume que os Procuradores Conselheiros do Reino Unido, ao contrário dos conselheiros americanos que defendiam o recurso ao precedente das invasões de 1993 e 1998, alertaram para a necessidade de uma nova resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas que definisse a) a pertinência da situação política e social no Iraque para justificar uma intervenção militar internacional e b) a dimensão da força a usar nessa intervenção.
- Blair confirmou que o Procurador-Geral do Reino Unido, Lord Goldsmith, apenas foi chamado a participar em duas das vinte reuniões de gabinete acerca da invasão do Iraque e apenas nas duas semanas que antecederam a invasão, i.e., quando a invasão já estava decidida. Assume também que o mesmo procurador – que lhe entregara, a seu pedido, a 4 de Janeiro de 2003 um draft da sua posição acerca da invasão – tinha demonstrado hesitação em ir contra as resoluções explícitas das NaçõesUnidas.
- Confirma que não procurou nenhuma espécie de apoio legal acerca do assunto, além de uma carta (não se lembra de quem) recebida do Ministério dos Assuntos Exteriores.
- Confirma que, decidida a invasão, deixou ao critério do exército a avaliação dos recursos necessários à intervenção, recursos que, de acordo com os líderes militares do país, foram manifestamente insuficientes, mas cuja responsabilidade descarta. Não fez nenhum acto de contrição perante os familiares dos militares mortos presentes na audiência.

Lembro que a guerra no Iraque custou cerca de 10,7 milhões de dólares ao Reino Unido, mobilizou 45,000 militares e fez 179 mortos entre eles. O Sr. Blair, após ter sido galardoado com a Medalha da Liberdade por G. Bush, assume hoje funções de conselheiro para a paz no Médio Oriente.

Recomendo a emissão da CNN. Note-se que a emissão BBC está com um minuto de delay assumido e a Sky com mais ainda.

Da abjecção

Tenho resistido a escrever sobre o blogue Câmara Corporativa mas hoje vai ter de ser. O modo como João Magalhães responde às críticas sucessivas que Tiago Mota Saraiva tem feito à Parque Escolar é, no mínimo, abjecto, e revela uma indisfarçável vontade de intimidar quem mais não fez do que exigir critérios de transparência e questionar o discurso oficial sobre o sucesso incontestado da empreitada. A referência ao facto conhecido do Tiago ser arquitecto e sócio de uma empresa de arquitectura – e a insinuação de que seria assessor político, no caso do PCP – é perfeita desconversa. Infelizmente, não foi a primeira vez que o referido blogue caiu nessa tentação e parece-me cada vez mais a sua raison d’être. Há quem jure a pés juntos ter estado com o Miguel Abrantes - o blogger mais prolífico da coisa - em jantares e outros convívios, há quem considere que ele não passa de uma espécie de cyborg feito de vários assessores do governo. A tratar-se de uma cobertura, é bom não confundi-la com um mero e legítimo pseudónimo, como por aí já ouvi. Neste caso, a situação assemelha-se mais a um gabinete de vidros fumados que usa o seu lugar privilegiado no panóptico social para disparar sem ser visto. E para transformar o que devia ser o debate público num jogo de snipers com armas desiguais. Este foi apenas mais um exemplo. Mas fez-me transbordar o copo.

Pequeno contributo para ampliar o alcance das leis francesas e italianas sobre os véus

Howard Zinn (1922-2010)

A primeira vez que conheci um verdadeiro cidadão dos bons velhos EUA, perguntei-lhe se me sugeria algum livro que contasse a "outra história" dos Estados Unidos. Pergunta esquerdista decerto, mas adequada ao interlocutor em presença. A escolha recaiu sobre A People´s History of the United States, obra extensa, mas lida de uma só penada, no Verão em que tive a oportunidade de frequentar a biblioteca do IIRE em Amsterdão, local do fortuito encontro.

A morte de Howard Zinn no passado dia 27 de Janeiro impele-me a revisitar esse livro, homenagem justa ao historiador, intelectual e activista social de muitas causas.

Antes da dívida temos direitos!


Carvalho da Silva, Sanda Barata Belo, Chullage, Diana Andringa e Miguel Guilherme deixam as suas razões para a subscrição e apoio à petição "Antes da Dívida Temos Direitos!", que exige justiça nas contribuições para a Segurança Social e contrato de trabalho para os trabalhadores e trabalhadoras sujeitas à ilegalidade
dos falsos recibos verdes.

É obra (meu deus!)


Almeida Santos, presidente honorário do PS, teceu
rasgados elogios aos sucessivos governos regionais de Alberto João Jardim. Aquilo que efectivamente me espanta nestas palavras não é o tanto o lugar de onde foram proferidas - sessão de encerramento do congresso do PS-Madeira - nem o eco que nos vem de idênticas considerações feitas em tempos por Jaime Gama. Anoto com surpresa esta admiração de alguns senadores socialistas pela figura do eterno rei do carnaval funchalense, mas não é algo que me tire o sono. Aquilo que me espanta mesmo é o modo como Almeida Santos justifica a imagem positiva que faz de Jardim. Apesar de «não apreciar» o modo como este faz «política», acentua o desenvolvimento «ao nível das infraestruturas urbanísticas, rodoviárias e turísticas». Registo portanto o entendimento da «política» como coisa menor, essencialmente confinada a um estilo retórico de intervenção. O exercício dos poderes públicos seria destinado, pois, ao mais nobre propósito de «fazer obra», processo entendido como meramente técnico e fundamentalmente neutral. Pensei que um socialista quisesse antes falar dos critérios de aplicação dos dinheiros públicos e da sua gestão, mencionar os ataques à liberdade de imprensa na ilha, preocupar-se com a forte permanência de bolsas de exclusão social no território. Sei lá, zurzir no recente «desterro» do cónego da Sé para o Machico. Qualcosa di sinistra.

Nós somos da Póvoa do Varzim

A última aula de Alexandre Alves Costa foi ontem, na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. Em "Nós somos da Póvoa do Varzim", fala de identidade, espaço, arquitectura, economia, política. Sobre como é ser português e contemporâneo, como ser contemporâneo sem deixar de ser português. O video que tinha colocado aqui deixou de estar disponível. Fica a referência ao sucedido.

O sucateiro de Ovar

Era uma vez um pobre sucateiro que andava a mourejar no seu quintal quando o vento lhe traz de longe uma folha de jornal perdida que vai aterrar bem aos seus pés.
“Mas que temos nós aqui?” - pergunta-se o humilde respigador.
Abre a ressequida folha e logo se depara com uma fabulosa notícia que meditava sobre o PESGRI e a problemática da classificação do Catálogo Europeu dos resíduos industriais enquanto matérias-primas secundárias – nomeadamente “o empolamento dos quantitativos da produção de resíduos e a subavaliação da importância dos circuitos, muitas vezes desconhecidos, de reciclagem e de reutilização dos materiais usados”, matéria sobre a qual tinha a sua opinião muito própria.
Foi logo ter com um vizinho e perguntou-lhe:
“Oh, Armandinho, você que até tirou a quarta classe e nas palavras não tem quem o cace, não conhece por aí ninguém que tenha um lixo industrial para vender?” Respondeu-lhe o vizinho: “Pois, sim, vizinho, não hei-de ter?!” E continua: “Por menos de um nada faço-lhe esse favor. Tem por aí alguns euritos?” O pobre sucateiro leva a mão ao bolso da calça puída. “O... 2, parcos dinheiritos...”. O vizinho, rapina, lança-se à moedita e segue caminho, com a promessa de voltar para novo entendimento.
Passados dias, volta com as informações tão preciosas:
“Meu compadre Renato tem por lá umas coisitas e meu primo Pedregulho, outras coisitas tem. Veja lá, caro vizinho, como por menos de um nada se deixa Portugal mais limpinho.”
Põe o sucateiro pés ao caminho e por onde ele passava tudo ficava mais limpo: tirava daqui, punha acolá e cedo a sua casita cresceu em prosperidade. Mas não fazia invejas: sempre ao domingo, cachecol e bandeira, ia distribuir os ganhos entre a malta desportista e os pobrezinhos da aldeia.
Mas, certo e sabido, o azar sempre espreita à porta da gente escorreita... O vizinho Armandinho, vendo-lhe a casa a crescer, não contente com a maquia, vai-se ao pobre sucateiro reclamar nova quantia:
“Sabe, caro vizinho, pesa-me a responsabilidade de tanto bem distribuir. Para quem mais oferecer, melhor saberei retribuir...” - lamenta-se, de olhos mansos, o compadre. O sucateiro coça a cabeça, tentando reunir ideias, espantado como estava com o vizinho e as suas maneiras... “Pois não lhe dou mais nada!” - retorquiu e lançou-se de novo ao caminho.
No dia seguinte, pela aurora, aparece-lhe a Guarda à porta para o levar por prisioneiro à presença do Juíz de Fora. Que havia roubado, que era usurpador! Vá lá entender a gente o destino amargurado do homem trabalhador... Quanto aos outros malfeitores, por aí andam metidos, no negócio dos favores aos pobres desprevenidos.

Moral da história: Habilidade e conhecimento só são úteis a quem tem o descaramento.

Assobiando (replay)


Sempre que me falam daqueles modos quotidianos de exercer o poder, de erguer tracejados sobre o que é legítimo e o que é interdito, lembro-me de um conto do Mário Dionísio. Chama-se Assobiando à Vontade e conheço-o publicado no volume O Dia Cinzento e outros contos. A acção desenrola-se num eléctrico apinhado de gente à hora de ponta. A dada altura, surge uma interferência na moleza introspectiva dos corpos: um homem começa a assobiar. A multidão anónima entreolha-se – cúmplice, silenciosa, unida na mesma censura. Ninguém se deve fazer ver assim, tão subversivamente, parecem pensar. Mas o homem continua enleado na sua abstracção construída. Quando o eléctrico pára, só ele sai. O assobio, esse, permanece algures, no escárnio arrumadinho dos outros. É o momento, diz-nos Dionísio, em que tudo volta «pesadamente, a encher-se de silêncio e dignidade». Até que alguém venha de novo romper os cristais baços da sisudez.

O quadro - «A Eduarda com seis anos» - é da autoria de Mário Dionísio, retratando a sua filha Eduarda Dionísio. Está no conjunto de obras do autor disponibilizadas on-line pelo Centro Mário Dionísio. Já agora, uma nota para os lisboetas: estejam atentos à dinâmica actividade da Casa da Achada.

A emissão segue dentro de momentos

Serve este post para anunciar, de forma plebeia mas entusiasta, que o blogue passa a contar desde hoje com mais uma excelentíssima escriba. Seja bem-vinda, Frederica Jordão.

Countdown

Faltam exactamente 40 dias para um concerto promissor de Bill Callahan e há quem entretenha a cabecinha a discutir princípios, estratégia e táctica do Bloco de Esquerda para as próximas eleições presidenciais. À boleia, inchados, dissertam sobre o mui nobre futuro das esquerdas românticas e realistas, consequentes e inofensivas, sectárias e pluralistas, verdadeiras e traidoras. Aos visados: atenção às prioridades.

Um passo em frente

Alegre anuncia-se disponível para derrotar Cavaco e ajudar a construir um país «mais justo e solidário». Louçã gosta; Vitalino Canas não gosta. Esta é a primeira boa notícia. A segunda é o excelente sentido de oportunidade do fotógrafo do Público.

Adenda presidenciável

Enganei-me aqui em relação ao timing de Manuel Alegre. Parece-me prematura a sua afirmação de disponibilidade, mas cumpre a função de exercer pressão sobre o PS. A bola agora está do lado de Sócrates. Ceteris Paribus.

E Maria Cavaco Silva?

As reedições sucessivas do debate sobre o movimento feminista - história, gerações, agenda e false-friends - nem sempre são capazes de reencontrar os seus outputs mais originais, sobretudo quando residem nas zonas mais insupeitas e comichosas da cultura política contemporânea. Fica um contributo - indirecto e ardiloso, como manda a sapatilha - de José Pacheco Pereira que, paradoxalmente, nos tem presenteado nos últimos tempos com provocações dignas de um José Vilhena. De resto, proporcionais ao facilitismo e à injustiça intelectual com que tem vindo a ser criticado e menorizado em diferentes mesas de café:

Um ano depois [das suas declarações infelizes sobre o Maio de 68], o mesmo Sarkozy casou com uma senhora que foi modelo, que no exercício da sua carreira apareceu várias vezes em trajes menores e mesmo sem trajes nenhuns e que, sem Maio de 1968, muito dificilmente poderia ser primeira-dama de França, nem a ninguém passaria pela cabeça que fosse, a começar pelo putativo esposo. Na tradição de Mitterrand e Chirac seria quando muito uma espécie de "segredo de Estado" permitido e consentido por velhas regras machistas e pela douce France, num universo paralelo ou em Tóquio, mas não no Eliseu. Goste-se ou não - e eu não gosto da exposição excessiva da privacidade, mas gosto que Sarkozy possa escolher ter a vida que quiser -, os costumes mudaram. As sociedades têm face à vida pessoal uma atitude mais laica e menos normativa, a hipocrisia continuou mas desabitou alguns lugares e isso é do "espírito do tempo". O problema de Maio de 68 é que o mês "a liquidar" está bem dentro da cabeça dele e ele não sabe, ou faz que não sabe.


in “Revisitações aos locais infectos”. Público. 6 de Abril de 2008.

Quem tem medo do feminismo (3)

A comemoração dos 35 anos da manifestação do MLM (Movimento de Libertação das Mulheres) no Parque Eduardo VII – que teve uma cobertura jornalística e blogosférica assim a modos que tímida* – está a ser pretexto para uma afável troca de impressões na caixa de comentários do post abaixo. Ana Vidigal trouxe para aqui uma notícia do Expresso de 15 de Fevereiro de 1975, que indica a forma como as organizações de mulheres tomaram diferentes posições sobre a manifestação do MLM. Frederica Jordão e Rui Bebiano fizeram anotações críticas à maneira como os partidos de esquerda lidaram na altura com a temática do feminismo. E todos ficamos à espera do texto que a Maria João Pires está à espera – um contributo para a compreensão dos entraves levantados à afirmação deste eixo reivindicativo.

Escrevi em tempos um texto – destinado ao Congresso Feminista 2008 – no qual abordava aquilo que me parece ser a «presença ausente» do feminismo em Portugal durante os anos sessenta e primeira metade dos anos setenta. Não me vou agora repetir. Mas a ideia básica é a de que a ausência de colectivos apostados na imbricação entre público e privado – na linha do que se chamou «feminismo de segunda vaga» – resulta do forte investimento ideológico da ditadura na identificação da mulher com os papéis de «esposa», «mãe» e «fada-do-lar», mas também da abnegação, por um lado, e da «lógica das prioridades», por outro, exercitados pela causa antifascista. A configuração repressiva do Estado Novo ajuda a explicar isso, mas não totalmente. Em primeiro lugar, porque em casos similares, como em Espanha, houve apesar de tudo esboços de feminismo (desse «feminismo de segunda vaga»). Em segundo lugar, porque mesmo após o regime cair as organizações políticas de esquerda mantiveram-se arredadas e insensíveis ao tema. Na melhor das hipóteses, o feminismo era uma questão para «amanhã». Algo que ouvi muito bem sintetizado numa história contada recentemente por Sheila Rothbawm. Estava ela um dia a falar de feminismo num encontro trotskista (e sublinho o contexto, porque é importante) quando no período dedicado a perguntas e comentários alguém se levanta e questiona: «tudo isso que diz faz sentido, mas não acha que é um bocadinho utópico?»

Volto às imagens da manifestação de 1975, que ainda não me saíram da cabeça. Aqueles machos latinos a conquistar coutadas são verdadeiramente seres paradoxais. Pertencem tanto ao passado como ao presente, são os herdeiros do podre regime salazar-marcelista e os potenciais agitadores de bandeiras - que por exemplo, nesse dia e no outro, esvoaçaram em comícios contra e a favor da unicidade sindical, respectivamente. É por isso que gosto muito de uma expressão de William Faulkner: «o passado nunca passa». Não pelo seu travo aparentemente conservador, pela sua apologia do imobilismo, mas porque a frase nos alerta para o facto de todos os fenómenos de transformação social, mesmo quando deles se desprende a força do inédito e do novo, ganharem inteligibilidade no seu confronto com o passado. Com efeito, o biénio revolucionário de 1974-76 mudou profundamente a sociedade portuguesa e várias conquistas sociais então alcançadas melhoraram em muito a condição das mulheres. Mas o desprezo e a incompreensão com que determinados acentos feministas foram genericamente recebidos não pode também deixar de ser parte da história do período.

* A Salomé Coelho faz-me notar que a cobertura noticiosa não foi assim tão tímida. É possível consultar as notícias que sairam na página facebook do evento.

Quem tem medo do feminismo (2)



Maria João Pires e Ana Vidigal postaram estes vídeos e eu não resisti em traficá-los para aqui. Estávamos em 1975, e o mesmo país que procurava construir um futuro novo era capaz de ser mesquinho, insensível e violento perante as reinvindicações do feminismo. De uma violência tão obscena que o vídeo acima se transforma numa autêntica lição de história. E de coragem.



A propósito dos 35 anos da manifestação do MLM (Movimento de Libertação das Mulheres) no Parque Eduardo VII, celebrados hoje pela UMAR (União das Mulheres Alternativa e Resposta).

Quem tem medo do feminismo?


Hoje, a UMAR celebra os 35 anos da primeira manifestação feminista, em Portugal, convocada pelo Movimento de Libertação das Mulheres com uma concentração no Parque Eduardo VII. Esta iniciativa é importante para recordar que o feminismo existe e que não está silenciado. Machistas histéricos não são convidados, mas homens feministas serão bem recebidos.
E não, não vai haver queima de soutiens.

Pensando juntos

Tenho um amigo que diz que sempre que se fala de presidenciais devemos ter na cabeça uma expressão: «é extemporâneo». Não deixa de ter graça e alguma razão. Mas não só o debate aberto é um bem escasso que convém aproveitar sempre que o temos à mão, como julgo que a esquerda deve fazer já esta reflexão e preparar-se para tomar posições. Já lá irei.

Apesar de não me identificar totalmente com a mundivisão de Alegre, defendi aqui que é o candidato melhor posicionado para derrotar Cavaco. Haverá outros mundos possíveis? Claro, há sempre outros mundos possíveis. Confesso que gostaria de ver Carvalho da Silva na corrida presidencial mas é óbvio que não avançará, desde logo porque esta hipótese estranhamente não agrada ao PCP. O post do Tiago Mota Saraiva é sintomático a este respeito. Como é sintomático que avance o nome de Octávio Teixeira, o que nos remete para um outro cenário possível: PCP (e Bloco?) a apresentarem candidaturas próprias que servem essencialmente para a demarcação do seu espaço político.

O Nuno Ramos de Almeida, por sua vez, apresenta uma nuance importante: é diferente Alegre apoiado ou sem o apoio de Sócrates. Sem dúvida. Pegando na entrevista dada este fim-de-semana ao Expresso, o Hugo Dias sublinha a vontade de Alegre querer contar com o apoio do PS para concluir que essa provável relação deve desde já levar a esquerda a procurar protagonistas que dêem corpo a uma candidatura alternativa.

Não estou tão certo, porém, que uma coisa deva levar à outra. A questão do apoio do PS é importante (e perigosa) para a esquerda mas devemos ter em atenção que há várias formas dele se materializar - se se materializar. E se Sócrates apoiar «por arrasto»? E se não participar na campanha? E se na construção e na dinâmica da candidatura eleitoral de Alegre se expressarem várias componentes da esquerda na qual o PS, não estando ausente, não seja hegemónico? É óbvio que Alegre não quer nem pode alienar o eleitorado socialista mas ao mesmo tempo sabe que a única forma de ganhar é não se colar a Sócrates. Foi isso que fez ao longo dos últimos anos, construindo um espaço político e ideológico à esquerda da actual direcção do PS, o que passou por iniciativas como o encontro de esquerdas no Teatro da Trindade, a votação contra o actual Código do Trabalho ou a dinamização do MIC e da ops! - revista de opinião socialista.

Claro que a decisão da candidatura de Manuel Alegre está sobretudo nas mãos do próprio e é ele que decidirá os moldes em que isso acontecerá. Mas a esquerda deve ter a ambição de exigir que Alegre não abandone aquilo que foi nos últimos anos. Se assim o fizer estará a contribuir decisivamente para a derrota de Cavaco – cuja candidatura ganhará um evidente ímpeto a partir de Maio, com a visita do papa – e a propor-se eleger o primeiro presidente da república que se situa à esquerda da direcção do PS.

Alegre Tabu

Sobre Manuel Alegre a procissão ainda vai no adro. A sua vontade de recandidatura é notória mas não creio que adiante muito nos jantares previstos para o mês de Janeiro. Os seus apoiantes investem nestes encontros gastronómicos, o que também não desagradará a Manuel Alegre. É uma forma de manter a visibilidade em torno da sua pessoa enquanto putativo candidato. Mas o que Manuel Alegre aguarda realmente é o apoio inequivoco do Partido Socialista. A sua entrevista na Edição do Expresso de hoje parece-me clara: “É uma decisão pesada. Tem de ser muito ponderada, independentemente da vontade e da disponibilidade. Há factores de ordem pessoal e política. Eu fiz a campanha de 2006 em dois meses e picos, fiquei a 29 mil votos da 2ª volta, sem apoio partidário. Mas as coisas dificilmente se repetem e nem eu estou disponível para uma repetição. (…) Uma candidatura é uma decisão pessoal e um acto de independência. Mas, para vencer, obviamente que o apoio do PS é importante. Se alguém se candidata é para ganhar. Isso não muda a natureza da minha candidatura, caso tome essa decisão. “ Sócrates diz que ainda é cedo, Alegre aguarda, e a Esquerda fica refém deste Tabu.

Contrariamente ao que Manuel Alegre diz, o apoio expresso do PS a uma candidatura sua muda de facto a sua natureza. Nuno Ramos de Almeida sintetiza bem, na minha opinião, o que significa uma candidatura com o apoio do PS, e outra, bem diferente, sem o seu apoio. No primeiro caso, “se não duvido de certas qualidades de Alegre, tenho poucas certezas em relação à sua utilidade. Uma candidatura de Alegre apoiada pelo PS de Sócrates, à primeira volta, nunca contará com o meu voto. A eleição de um candidato manietado pela actual direcção do PS, é um voto na política de direita, nas negociatas e na promiscuidade entre o governo e os interesses privados. Não pretendo legitimar a sua existência apoiando um seu candidato.“

No outro caso “pode dar voz às centenas de milhar de eleitores socialistas que não se reconhecem neste PS. (...) Nesse espaço cabe Manuel Alegre, por direito próprio, e poderá ser, se o quiser, um protagonista deste necessário realinhamento da esquerda. Para além de resistir, a esquerda deve ter ambição de poder mudar este pais. Apenas com a participação de sectores de esquerda do PS, do PCP, do Bloco e de muitas e muitos independentes isso será possível. Só nessas circunstâncias, e com esse objectivo, votarei Alegre.”

Mas a provável recandidatura de Alegre com o apoio do PS, suscita uma discussão importante para a Esquerda. Neste caso, e para que a Esquerda não seja refém de uma candidatura que não quer, de um projecto que não clarifica uma visão política alternativa, é preciso não sucumbir à política do facto consumado. Tal coloca responsabilidades aos partidos à esquerda do PS (sobretudo ao BE) na definição de que principios orientariam uma candidatura que procure ocupar esse espaço político – prioridades, propostas, protagonistas. Nada disto será fácil. Mas a não aceitação deste fatalismo é o ponto de partida para se pensar que pode existir uma candidatura de esquerda para além da de Manuel Alegre. Contem comigo para isto, e não para o resto.

Sudoku para intelectuais

O post da Catarina Carneiro de Sousa sobre a experiência artística da Caldeira 213 começava com uma citação de Enrique Vila-Matas que me fez ir reler partes dos livros do autor que por aqui tenho: o tal História Abreviada da Literatura Portátil e Da Cidade Nervosa. Este último reúne algumas crónicas publicadas na edição catalã do El País, e foi através de uma delas que quase me viciei na construção de palíndromos, jogo linguístico que consiste em compor frases que se leiam igualmente da frente para trás. «Así me trae Artemisa», «A ser gitana, tigresa», «Salta Lenin el Atlas». Já uma vez escrevi sobre isso num blogue da pré-história, após ter conseguido fazer o meu primeiro palíndromo: assim a luz azul, a missa. Porque hoje é sábado, aqui fica a sugestão alienante para o fim-de-semana.

Imagem: Paul Klee, Blue Night (1937)

A pergunta à qual Sócrates não soube dar resposta

empowerment


Sim, hoje é um dia histórico. Sim, hoje deu-se um passo mas faltou coragem política para se dar o outro. Sim, legislar sobre estes assuntos é combater a homofobia. Têm dúvidas? Vejam o «zelo» dos agentes de segurança nas galerias do Parlamento. Festejemos, pois então. O casamento e os combates que têm de continuar.

A foto (belíssima) é de Paulete Matos

Agora escolha

Eis o candidato do Partido Socialista para as próximas eleições presidenciais.

A esquerda e a futura candidatura de Alegre

Confesso que não me agrada por aí além a figura de Manuel Alegre. Tenho alguns pruridos relativamente à caça e nunca deixaria que me erguessem estátuas enquanto estou vivo (morto já não respondo por mim). Em termos mais claramente políticos, também me sinto apartado dos discursos algo passadistas que usam a palavra «pátria» como se dela emanasse um halo ético simultaneamente inclassificável e catalisador. Com efeito, frequentes vezes se esquece o carácter excludente da noção: mesmo que não seja só dos patriotas, a pátria é dos patrícios; não dos apátridas e dos expatriados. Bem sei que há modos inclusivos de pensar a «pátria» – e até nomes mais arejados para designá-la – mas também sei que o republicanismo de esquerda não foi nem é imune à tentação da homogeneidade e ao chauvinismo cultural. Por outro lado, penso que no dia em que Alegre apresentar a sua candidatura, muitos daqueles eleitores que votaram à esquerda de Sócrates – ou no PS apesar de Sócrates – não terão muitas dúvidas sobre qual o destino do seu voto. Porque Alegre é o único candidato capaz de derrotar Cavaco. E será na dinâmica que se estabelecer a partir desse dia que se jogará também o debate sobre a esquerda que temos e a esquerda que queremos.

Envergonhados

A proposta de referendo ao casamento homossexual trouxe um importante efeito colateral. Os defensores da «vida», da «tradição» e da «família» concentram-se agora na legitimidade do referendo (e na ilegitimidade da AR) e suspenderam por momentos o argumentário apocalíptico. A plataforma referendária chegou mesmo a dizer que não é contra nem a favor dos casamentos homossexuais - o que o currículo dos seus promotores, a escolha dos locais de recolha de assinaturas e os textos incluídos no site, não só desmentem como tornam ridículo. Na verdade, tudo isto me dá pena. Esperava um final em grande estilo, daqueles em que o fragor aproximado da derrota final traria a transparência das opiniões. Conservadores envergonhados, é o que são.

Ficaríamos por aqui se a lei apresentada pelo PS não fosse, ela própria, um passo envergonhado: dá o casamento mas retira a adopção. E a roçar perigosamente a inconstitucionalidade, o que pode acarretar um indesejável impasse na aplicação da lei. Como tenho lido alguns socialistas afirmarem-se favoráveis à adopção, estou curioso por saber quantos, perante essa possibilidade concreta, irão votar a favor dos projectos-lei que o proporcionam. Ou serão socialistas envergonhados?

Teoria da prática


Há coisas fantásticas, não há?

Leio no "i" que acusam a FNAC de censura ao livro "Porque não - casamento entre pessoas do mesmo sexo", escrito por Pedro Vaz Patto e Gonçalo Portocarrero de Almada. O facto desta certamente fantástica "obra" não ter estado disponível nas prateleiras da FNAC durante a época de Natal (quem é que não queria oferecer este livro no natal?) já motivou uma recolha de assinaturas como protesto. Aparentemente a FNAC já garantiu (não desesperem, pois) que o livro estará nas suas prateleiras brevemente. Se quiserem adquirir o dito, é só procurá-lo na secção de Humor ou Esoterismo.

Caldeira 213

“Há na insolência uma rapidez de acção, uma orgulhosa espontaneidade que quebra os velhos mecanismos triunfando pela sua prontidão sobre um inimigo poderoso mas lento. Desde o primeiro momento, os shandys viram que nada era tão desejável como o facto de que a conjura portátil se transformasse na exaltação espectacular daquilo que surge e desaparece com a arrogante velocidade do relâmpago da insolência. Daí a existência da conjura shandy, cuja característica principal era a de conspirar por conspirar, fosse breve.” (Enrique Vila-Matas, História Abreviada da Literatura Portátil)

A Caldeira 213 foi uma associação de jovens que reuniram os seus esforços em torno de um espaço de produção e exibição artísticas, na Rua dos Caldeireiros, na cidade do Porto, entre 2000 e 2002.

A necessidade de materializar um processo de reflexão sobre o que aconteceu durante o tempo em que a Caldeira 213 esteve aberta ao público originou a ideia de publicar um conjunto de textos. Não se pretende uma historigrafia da C213, nem um catálogo dos eventos que lá tiveram lugar, mas um debate de ideias que lance questões vindas do passado com a capacidade de se projectarem no futuro.

Nasce, assim, dez anos depois, uma publicação online sobre este projecto.

Happy New Fear

Ainda há umas horas andava a desejar a todos "Bom Ano" e agora apanho com um discurso do Cavaco a aconselhar-me a não ter medo do "destino chamado futuro". Não há dúvida que é ironia. Resta saber se para mim se para ele.