Assobiando (replay)


Sempre que me falam daqueles modos quotidianos de exercer o poder, de erguer tracejados sobre o que é legítimo e o que é interdito, lembro-me de um conto do Mário Dionísio. Chama-se Assobiando à Vontade e conheço-o publicado no volume O Dia Cinzento e outros contos. A acção desenrola-se num eléctrico apinhado de gente à hora de ponta. A dada altura, surge uma interferência na moleza introspectiva dos corpos: um homem começa a assobiar. A multidão anónima entreolha-se – cúmplice, silenciosa, unida na mesma censura. Ninguém se deve fazer ver assim, tão subversivamente, parecem pensar. Mas o homem continua enleado na sua abstracção construída. Quando o eléctrico pára, só ele sai. O assobio, esse, permanece algures, no escárnio arrumadinho dos outros. É o momento, diz-nos Dionísio, em que tudo volta «pesadamente, a encher-se de silêncio e dignidade». Até que alguém venha de novo romper os cristais baços da sisudez.

O quadro - «A Eduarda com seis anos» - é da autoria de Mário Dionísio, retratando a sua filha Eduarda Dionísio. Está no conjunto de obras do autor disponibilizadas on-line pelo Centro Mário Dionísio. Já agora, uma nota para os lisboetas: estejam atentos à dinâmica actividade da Casa da Achada.

2 comentários:

MDA disse...

Mas imagina a dor de cabeça se estivesse toda a gente, excepto uma pessoa, a assobiar no eléctrico apinhado...

Miguel Cardina disse...

Toda uma outra perspectiva, sem dúvida...

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