O estranho caso Vilarigues

Numa nota que servirá de futura cábula à deputada Rita Rato, António Vilarigues fez no Público uma recontagem dos «reprimidos» na Rússia (as aspas são dele): quatro milhões entre 1921 e 1953, 800 mil deles fuzilados. Baseia-se num estudo de Zemskov, publicado nos anos noventa, e que reduz a contagem apontada por outros historiadores. Talvez a questão até possa estar no critério de «vítima» (porventura contabilizaram-se apenas as vítimas directas e identificáveis), mas não é isso que interessa. O que interessa mesmo é a tola «comparação», efectuada de seguida, com os números elevados da população prisional norte-americana (as aspas são minhas, porque não estão lá). Sabemos o que isso nos diz sobre a agressão social nos Estados Unidos, a que estão particularmente expostos os pobres, os negros e os hispânicos. Porém, por mais criticável que seja um sistema e um país que isso promove, comparar ambas as coisas é como colocar lado a lado o genocídio arménio e o Holocausto, a perseguição aos palestinianos e as fogueiras da inquisição, a escravatura da idade moderna e as condições de trabalho na China. Serve para atirar areia para os olhos mas não ajuda a compreender a natureza das coisas. Mas se calhar a intenção era mesmo essa.

6 comentários:

O Manso disse...

Acho que o Vilarigues deixa tudo claro neste post

http://ocastendo.blogs.sapo.pt/797748.html, só interpreta doutra forma quem quiser criar juizos de valor...

Manuel Balsa disse...

O Miguel Cardina aponta para a comparação absurda e não refere os números, mas para além desse aspecto o «relatório Zemskov» é pateticamente parcial. Só não o vê quem não conhece pelo menos parte da historiografia credível produzida sobre o assunto. Os números absolutos são impossíveis de obter, é verdade, e algumas contas são excessivas e «impressionistas», mas isso não significa que nos deixemos embalar por mais esta leitura abolutamente parcial. A esquerda só tem a ganhar se encarar este tema e não procurar torná-lo menos feio (e «neutro») como o procura fazer o artigo de AV que saiu no Público.

Joana Lopes disse...

Bom dia, Rafael Fortes, reencontramo-nos, portanto, por aqui...
Li ontem o esclarecimento do Vilarigues, que refere aqui, e devo dizer que não «me convenceu». E não se trata apenas de fazer contas, com ábaco ou em computador: é a atitude sistemática de defesa do indefensável que está também em causa...

Miguel Cardina disse...

Caro Rafael,
Também acho o texto do António Vilarigues revelador: não esclarece ou recua na estranha comparação entre os presos nos EUA e os deportados e fuzilados na URSS, "confundindo" crimes de delito comum com delito de opinião, e continua a achar que o "essencial" é a contagem, os números, o tamanho da pilha dos mortos. Mais grave: a "contextualização" que lá está é uma autêntica desculpabilização da ditadura estalinista.

rafael fortes disse...

Cara Joana e Miguel, antes de mais, para deixar claro, condeno de forma clara e veemente os crimes stalinistas feitos em nome da revoluçao. Acho de facto deplorável que em nome do que quer que seja se mate seja uma, sejam mil, seja um milhao de pessoas.

Dito isto, acho que o que Vilarigues diz, e a mim parece-me claro -talvez por deformaçao ideologica, nao sei, digam-me voces- é que a verdade historica, concreta dos factos sobre os crimes stalinistas nao tem sido respeitada. E é nesse sentido que adquire importância a comparaçao com os presos nas cadeias americanas.

Os crimes existiram, mas têm sido inflacionados para dar lugar às comparaçoes mais absurdas como o de colocar ao mesmo nivel fascismo e comunismo - e essa comparaçao devia preocupar TODA a gente de esquerda- enquanto que factos que deveriam ser noticia, como o supracitado dos EUA sao minorizados. Nao está em causa a comparaçao entre crimes de regimes ditatoriais e violentos com proto-democracias musculadas de pendor totalitário, mas o desfasemento de critérios no tratamento de numeros de forma a criar uma opiniao publica mais suave com algumas posiçoes e mais dura com outras. E nao acho que Vilarigues tente desculpabilizar o stalinismo, o proprio fala de "repressao do regime sovietico" e isso parece-me o assumir claro de uma posiçao de condenaçao...

PS: Cara Joana, reencontramo-nos, é verdade e deixe fazer-lhe o elogio publico ao seu blog que acompanho e às opinioes que transmite. é raro encontrar na blogosfera (contra mim tb falo) a serenidade e acutilância com que faz as suas análises. Um sincero bem-haja.

Joana Lopes disse...

Obrigada, Rafael, pelo seu PS no último comentário. Nunca deixei rasto, mas também passo pelo seu blogue.
É para irmos confrontando opiniões que por aqui andamos.

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