os meios e os fins

Daniel Oliveira e alguns bloggers do 5 Dias (desta vez Nuno Ramos de Almeida, Zé Neves, Renato Teixeira, Tiago Mota Saraiva, João Branco e Carlos Vidal) envolveram-se novamente num intenso fogo cruzado. O propósito foi agora o da agressão a Berlusconi, mas a conversa resvalou para o lugar da violência na política. Despacho desde já o tema Berlusconi porque me parece pacífico (salvo seja). Apesar da antipatia que a figura provoca, não vislumbro qualquer intencionalidade política na agressão nem me agradam as retóricas de vitimização que já se alimentam do gesto. Berlusconi, aliás, percebeu isso segundos após ser agredido, expondo-se à multidão com um ar de boxeur apunhalado pelas costas. Ponto final, parágrafo.

Já o tema da violência pia mais fino. Numa referência ao regozijo de Renato Teixeira pela agressão, Daniel Oliveira nota a «pobreza moral de quem olha para acção política como uma simples forma de descarregar a frustração da derrota», assumindo a defesa de um pacifismo que considera «radical» na sua recusa em mimetizar o carácter violento do poder. Zé Neves, por seu turno, faz eco de uma visão «comumnista» que tem invariavelmente a vantagem de enriquecer o debate e de buscar uma «terceira via» entre «marxistas-leninistas» e «social-democratas». Zé Neves, para além da crítica a quem leu o gesto de agressão a Berlusconi como uma espécie de «vingança popular», desagrada-se com o que considera ser a divisão demasiado estanque que Daniel Oliveira perfilharia entre táctica e princípios.

Devo dizer que esta me parece uma crítica algo forçada, tendo em conta o que escreveu Daniel Oliveira. Mas, independentemente disso – e da questão de saber o que se entende por violência, e quais as suas gradações, o que talvez ajudasse a clarificar a discussão –, o certo é que o post de Zé Neves tem a vantagem de levantar um tema conexo da máxima importância: o da relação entre meios e fins, entre métodos e objectivos, entre o que fazer e o para que fazer. A segmentação destes pólos fez com que a história da esquerda tivesse demasiados traços de calculismo e dissimulação, dando razão a Agnes Heller quando se referiu à «cegueira ética» do marxismo.

No caso em apreço, isso não significa que se defenda a eliminação ideal da(s) violência(s) ou o pacifismo como alfa e ómega da acção e do pensamento político. O grande desafio consistirá em assumir um quadro de valores que resgate a distinção entre aceitável e inaceitável do espartilho da «análise concreta das situações concretas» - ou da ideia de que a guerra, o assassínio ou a tortura são inevitáveis até à madrugada a seguir à noite da luta final. Fenómeno, aliás, que tem sido muito pouco ratificado pela prática, o que por si só já nos devia ensinar alguma coisa. É que quando os fins justificam os meios, eles próprios já estão a participar nos fins que entendem alcançar. Por outras palavras: pode haver uma guerra para instaurar a paz; mas saibamos que ela nunca é só um meio para esse fim.

24 comentários:

rafael disse...

Reproduzo aqui um post escrito sob este assunto e que utilizei como comentário no arrastao e cinco dias. Deixo-o aqui também.
1)
A certo ponto parece estar-se a discutir qual das duas formas é que é legitima para a Esquerda "tomar" o poder ou, colocando de outra forma, como o povo ou as populaçoes conseguem ser a parte mais ouvida, mais atendida, aquela que tem a voz determinante na definiçao dos rumos da sociedade (esta é a minha definiçao de a Esquerda tomar o poder, é o que é).

As duas teses em confronto, embora também me pareceu ler quem partilhe da minha opiniao, seriam, por um lado, um encarar o pacifismo como acto ultimo e derradeiro, verdadeira superioridade da luta dos Povos e, a outra, seria a da necessidade da violência, cruzando-se aqui com se a porrada que Berlusconi sofreu foi um acto licito moralmente ou nao. Pareceu-me em certa altura que, do lado dos "pacifistas", se condenava o recurso à luta armada. E pareceu-me ler, nao sei se motivado pela intensidade do momento, a condenaçao da acçao nao-violenta como forma de luta.

rafael disse...

2)
Tanto uma como outra posiçao parecem-me algo tolas. Passo a explicar a minha opiniao. Qualquer luta politica e social tem um objectivo concreto: a conquista do poder, reivindicaçoes laborais, apoio a uma medida governamental, enfim, podem ser a favor ou contra instituiçoes, a forma da relaçao com o Estado para a questao importa pouco, pois tanto o Estado como o Povo sao entitades/ estruturas que através de si ou por si conseguem gerar, potencialmente, violência ou nao-violência.

A prossecuçao desse objectivo ultimo que pode ser atingido na totalidade o parcialmente deve ser conseguido com o minimo de esforço possivel, sendo aqui um pouco abstracto o conceito de esforço, podendo estarmos a falar de vidas humanas (em lutas pela autedeterminaçao, por exemplo) ou em dias de salário (uma greve) ou ainda retaliaçoes sociais e profissionais (a expulsao de universidades, o ser preso numa manifestaçao). Este balanço tem de ser sempre feito durante um processo de luta, de modo permanente, tanto pelas estruturas dirigentes/ coordenadoras desses processos como pelos "reivindicadores" ou seja o Povo, os Estudantes, os Trabalhadores ou os Benfiquistas, nao interessa particularmente nem a luta concreta, nem quais as aspiraçoes.

E é nesse equilibrio entre auscultar de forma permanente as pessoas, perceber a real capacidade e empenho das mesmas, perceber que vias podem ser mais onerosas à causa defendida e decidir que rumo tomar que creio que se joga o pacifismo com a luta armada.

Por exemplo, o pacifismo está a trazer para a ribalta o Sahara Ocidental, proporcionando-lhe uma visibilidade assombrosa, grajeando apoios vários e de todo o mundo [à excepçao da direita e centro português (PS incluido)], enfim tornando a sua luta um pouco mais eficaz, um pouco mais perto do seu objectivo. A Frente Polisario deixou a luta armada há 18 anos. Suponho que o tenham feito crentes que existiam condiçoes objectivas para atingir mais facilmente (com menor perdas, o fácil aqui nao é depreciativo, muito pelo contrário) o seu objectivo. No entanto, esta recusa de usar as armas nao parou que pessoas fossem torturadas, assassinadas, perseguidas, ostracizadas. Todas essas pessoas que durante esses 18 anos sofreram a acçao repressiva de Marrocos, muitas pagando com a vida, será que concordam ou concordariam com essa opçao? E, pelo lado contrário, pessoas que teriam morrido ou ficado mutiladas em combates e enfrentamentos entre o exercito marroquino e a Frente Polisario, teriam concordado com a persistência no caminho da luta armada?

rafael disse...

3)
Este é um exemplo bastante dramático, extremo, onde se joga entra a vida e a morte, mas a lógica de funcionamento, a ordem, o comportamento funcional enquanto estatégia de actuaçao aplica-se a qualquer tipo de luta social e politica. Mais que defender o pacifismo ou a luta armada, eu defendo a luta social e politica organizada, unitária, se quiserem dirigida. Uma direcçao que tem de ser fundada nos seus "dirigidos", que tem força a partir da sua razao de ser, da sua existencia e nao por externalidades mediáticas, amplificadores financeiros e de interesses, por compadrios de vontades.

Uma direcçao que tem a capacidade de encontrar esse equilibrio que falava acima - entre auscultaçao, ponderaçao e decisao - desde que tenha sempre um forte controlo democrático (mas mesmo democrático, de falar e ser ouvido) terá sempre a sua moralidade como superior, seja a via armada, seja a via pacifica a eleiçao, porque fá-lo consciente da precariedade do seu poder, do seu papel claramente instrumental, da sua insignificância quando comparado com a vontade Popular. A luta social e politica é mais forte, quanto mais forte for a sua Direcçao. A Direcçao terá a força porpocional à democracia verdadeira e efectiva (livre de externalidades) do seu processo. Se nao a luta esvazia-se como um balao sem ar...

Miguel Cardina disse...

Obrigado Rafael,
O problema destas discussões é que têm tantos ângulos que frequentemente já estamos a entrar noutros temas. É bem importante o assunto que convocas e concordo com algumas considerações, nomeadamente aquelas que complexificam o conceito de «violência», ainda que ache que o «diluis» demasiado.
Já quanto à questão da «direcção», convoca uma relação Partido-Povo, assim mesmo com maiúsculas, que a esquerda tem o dever de problematizar (e diria mesmo ultrapassar). É que por aí também reentra a questão da violência. Um exemplo: que fará essa direcção fortemente «fundada nos seus dirigidos» a quem divirja?

AP disse...

Oh Miguel que desiludes, então as vanguardas revolucionárias têm o dever de ouvir a maioria, e quando esta não quer falar, ou demorar demasiado tempo a decidir porque ainda é muita gente e com horários diferentes, assumir que a ouviram porque as coisas terão de ser feitas. Como direcção tem a legitimidade para decidir nos casos que divergem, e estamos todos descansados porque tomarão, sem dúvida, a atitude mais correcta, como com certeza no explicarão a posteriori.

MDA disse...

A carga política do acto poderia ser provada socorrendo-nos de Foucault e dos usos dos juízos psiquiátricos como reprodução de uma estrutura social desigual. Ou seja, não tendo intenções políticas, é um acto político.
Parece-me forçada a ideia do Foucault (muito mais razoável quando aplicada à escola ou à justiça), ainda assim...
De resto, nada de novo. Entre cães raivosos sedentos de pancadaria e social-democratas com pavor à violência, o debate é antigo e particularmente presente, por exemplo, no seio dos movimentos sociais.

Anônimo disse...

Pergunto a ti o que perguntei aos outros. Condenas ou não a agressão ao Berlusconi?
Renato Teixeira

Tiago Ribeiro disse...

Ai há barricadas? Ó Miguel, gostas mais do teu pai ou da tua mãe?

Anônimo disse...

Salvo raras excepções o pai e a mãe estão na mesma trincheira... já quando o tema é a violência... Ai há urnas e declarações de voto?
Renato Teixeira

Miguel Cardina disse...

Renato,
Não me compete condenar ou deixar de condenar. Se achei errado? Sim, achei. Presta-se a múltiplos aproveitamentos e foge do conceito que tenho de acção política, mesmo que radical. Fiquei triste? Não, mas os meus estados de alma são só isso mesmo. Mas os tribunais condenarão, o que me parece inevitável.

Tiago,
Gosto o mesmo. Não sei se reparaste, mas o MDA lançou para a arena o nome do Foucault...

Tiago Ribeiro disse...

Quando o tema é violência e a discussão é peregrina, quilos de democracia burguesa (aquela banhada das instituições, do procedimentalismo, da violência legítima, dos DLG - estás a ver o filme?) são a única pedagogia possível para a inconsequência, para a irreponsabilidade e - ainda bem - para a ineficácia política daqueles delírios ideológicos que de uma galheta vicentina fazem o ethos do seu programa revolucionário. Deus nos livre.

Tiago Ribeiro disse...

Sim, Miguel. O MDA, como sabemos, é um tipo perspicaz :) De psiquiatria e antipsiquiatria percebo muito pouco. Quanto ao resto, o Godinho dizia que mais vale ser um cão raivoso do que um carneiro. Mas deixa-me estar calado, não vá isto servir de cobertura poética a mais um episódio de faca e alguidar.

AP disse...

Xiça que anda tudo à batatada. É a esquerda radical com a moderada com o zé neves; o lomba com o outro um bocado mais ao lado; o italiano maluco e ainda o outro que lhe bateu com uma catedral; um tipo que mandou um sapato ao tipo que mandou o sapato ao Bush que mandou...
E nem uma das discussões é por causa de gajas. Foda-se mal empregadinho...

Tiago Ribeiro disse...

O AP sempre foi muito sensível à tragédia da violência doméstica. E com toda a razão.

rafael disse...

Caro Miguel,

o meu "receituário revolucionário" nao pretende dar respostas a questoes concretas, embora as considere pertinentes. Em ultima instancia, a resposta a essa pergunta dá-la-ao os Povos, os Estudantes, os Trabalhadores ou os Benfiquistas, no momento concreto, na situaçao concreta, de acordo com o seu nivel social e cultural colectivo e com a capacidade de interpretaçao da sua real força assim como da real força do seu adversário ou divergente, mesmo quando nao adversário. (sou daqueles que pensam que pode e deve divergir-se num processo revolucionário e que isso apenas lhe dá mais força)

Se a luta social e politica remete, do meu ponto de vista, para a relaçao Povo-Partido? Sim, mas provavelmente nao nos mesmos termos que a colocas ou penso que a colocas. Gosto mais (um gosto, nada mais) da expressao Direcçao, mas uma direcçao pura, verdadeira, efectivamente democrática, ou seja, nem burocrática nem representativa, essencialmente uma direcçao de auscultaçao e precariedade. E é essa precariedade inerente à sua essencia que faz com que à direcçao nao seja autorizado o poder per si de decisao, como acontece na grande maioria dos partidos hoje em dia. A direcçao nao é mandatada para representar e decidir. A direcçao é mandatada para dirigir e auscular. E aí é que reside a sua força: na responsabilizaçao do Povo pelo acto decisório...

Tiago Ribeiro disse...

Tanta letra maiúscula!!

Anônimo disse...

"Não me compete condenar ou deixar de condenar. Se achei errado?"
Isso é uma variante do não sei se vá se não vá... mas enquanto penso nisso vou ficando no caminho...
Achas que definir as coisas da vida pelos "múltiplos aproveitamentos" que possam ou não vir a ter faz sentido?
Já que estamos nessa podes clarificar com uma ou duas ilustrações o teu "conceito de acção política"? E uma "mesmo que radical"?
Em nenhum momento se falou da lambada no berluscas como uma acção polítca mas em algo que independentemente das suas consequencias politicas, tem a sua justiça. Admites que o Berlusconi mais do que a prosápia de D'Alemas, Bertinotis e companhia limitada merecia mesmo era uns bananos... não?

Os tribunais condenam tanta coisa que defendes... isso é pendulo ou fronteira para o que quer que seja?

Renato Teixeira

Tiago Ribeiro disse...

Miguel, podes trocar a ordem das perguntas desde que assinales devidamente. É política da casa.

Miguel Cardina disse...

Renato, acho que fui claro no post e no comentário sobre o que penso do acto pretensamente «heróico» do indivíduo.

Quanto às coisas da vida (e da política) fazem-se no fluxo entre os princípios e a respiração do tempo. Mesmo que não quiséssemos.

Já no que diz respeito ao meu conceito de acção política e a sua elasticidade, deixarei para uma altura em que tenha algum tempo para pensar e postar sobre isso.

Vou ver se está tudo em ordem que acabei de sentir um tremor de terra. Espero que não sejam os cossacos.

Anônimo disse...

ficarei à espera então desse tal post com mais tempo entre príncipios e respiração. :)

Abç

RT

Miguel Cardina disse...

Renato,

O tema dos princípios e da "respiração" (dos meios e dos fins) já é abordado no post. O que disse que teria de ficar para outra altura era o repto que lançavas para que esclarecesse melhor o que entendia por acção política e acção política radical. Tarefa titânica, como concordarás, ainda para mais não tendo nenhuma redacção pronta na gaveta ou uma cartilha para me socorrer.

Ainda assim, tenho algumas percepções que julgo relativamente seguras. A primeira diz respeito à noção de violência: se é verdade que existe violência legítima, também é certo que o seu uso nunca é apenas isso (um "meio"), integrando-se nas dinâmicas dos grupos que a praticam. Daí considerar a necessidade de uma constante "crítica da violência" e uma não menor atenção ao conceito de "vítima" (curiosamente não mencionado ao longo de toda esta polémica).

Em segundo lugar, penso que a noção de radicalidade remete mais para um conceito de alargamento dos campo do possível do que para práticas maximalistas. Ou seja, uma acção pacifista pode ser mais radical do que um uma tomada de posição bélica, uma reivindicação local pode ser mais urgente do que uma medida global, um momento de reflexão pode ser mais interventivo (e mais "honesto") do que um gesto intempestivo.

Por fim, e ainda com relação à radicalidade, e em desacerto com alguma tradição "radical", julgo que no momento presente é desejável "correr por fora" e "correr por dentro", trabalhar nas instituições e desejar o alargamento da intervenção democrática das pessoas e dos âmbitos do questionável. Os radicais chamarão a isto social-democracia; os social-democratas, radicalismo. É a vida.

Anônimo disse...

Desculpa o tempo de demora da resposta mas foram passando os dias e é pecado polemizar durante o santo natal.
Devo desde já dizer que foste muito mais claro desta vez. Da violência, à social-democracia, à vida e ao resto.
Pegando na tua comparação entre política e atletismo, devo lembrar-te que nenhum corredor de fundo é bom velocista e nenhum corredor de pista é bom corredor de corta-mato. Assim sendo desejo-te boa sorte na corrida por dentro, esperando que, mesmo sem cartilhas, não deixes de aparecer na corrida por fora.
Se assim o fizeres, e não fizeres como os outros que desapareceram das ruas para os corredores de São Bento, terás o meu apoio para a Câmara Municipal de Coimbra, nas próximas eleições autárquicas (ouvi dizer que serás tu, é verdade?), mesmo que sejas candidato com o gamarra do BE.
Aquele abraço fraterno,

Renato Teixeira

Anônimo disse...

Está última troca de galhardetes motivou este post. Aqui o deixo para continuar a parte substancial da discussão.
Renato T.

Anônimo disse...

http://5dias.net/2009/12/29/o-destino-do-terror/
RT.

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