(Ainda) Sobre a Stout, publicidade e feminismo(s)

Não tinha pensado iniciar a minha colaboração neste blog com um post sobre sexismo, mas dado os vários posts que li sobre o anúncio da superbock stout, não resisto. Até porque fiquei de facto surpreendida com algumas coisas que li, nomeadamente de dois companheiros de blog: o Tiago e o Diogo (aqui e aqui). Julgo que esta pub merecia uma outra "desconstrução" e que os/as críticos/as desta campanha, nos/as quais me incluo, mereciam outro "tratamento" :).
Antes de mais, dizer que, não sendo o cerne da minha crítica, não deixa de ser de facto irritante ver a recorrente e abusiva utilização, para efeitos mercantis, do corpo das mulheres na publicidade. Ora é para vender um detergente, ora para shampôs, carros, seguros, viagens, telemóveis, comida, bebidas, etc, etc.. Que falta de imaginação e que redutor, irra! :) Será que não nos conseguem convencer com outros argumentos, imaginários? O consumidor é assim tão "linear" que em tudo o que compre está a pensar em sexo? :)
Em segundo lugar, o facto de os papeis de género estarem completamente estereotipados, nomeadamente no vídeo, como bem referiu a Andreia.
Em terceiro lugar, o (meu) principal problema com esta campanha - e aqui refiro-me ao cartaz - é a mensagem veiculada: mostra parte de um corpo de uma mulher (que vai do peito e pára mesmo por baixo da cintura - o resto já não interessa, está a preto); uma mulher sem cara, de roupão, com uma mini por baixo do cordão e com as frases "é só puxar; nova abertura fácil; o prazer é todo seu (do homem)". Não me venham dizer que estas frases se referem só à cerveja e que nada têm a ver com o que está por trás. A associação que é feita pela publicidade procura precisamente relacionar, nem que seja no imaginário do consumidor, os dois.
Sem entrar em considerações, não vou por aí, sobre as características do corpo da mulher ao qual é associado - para não variar - o desejo sexual, o prazer (mais uma vez um corpo "escultural" tido como O belo, O atraente, e que deve "corresponder" a, vá, 2% das mulheres); aos estereótipos de beleza que ela veicula e às consequências que isso tem, realçar que o cartaz não é só básico, a associação que ele faz roça o insultante. Trata-se sim, a meu ver, de sexismo explícito: o corpo de uma mulher sem cara, que não é sujeito, ao serviço do homem para o seu Único prazer, do qual ele pode dispor à vontade e muito facilmente, e sobre os efeitos dessa mensagem. [Já agora: sexismo porque também redutor para os homens, o que está ali hipra representado é o heterossexual, que vê ou associa sexo em tudo e para quem o triângulo cerveja, bola, mulher comanda a sua vida].
Não Daniel e Shyznogoud, o meu incómodo não é , de todo, com a utilização do corpo como objecto de desejo, no facto deste cartaz mostrar a nudez, o desejo erótico, etc.. Vejo aliás isso como um muito bom sinal de que conquistámos a nossa "sexualização" e o espaço público. Está sim na desigualdade das relações de poder que lhe está inerente e que também por se tratar de mulheres deve merecer bem mais atenção (e crítica - cultural). Não por sermos umas "coitadinhas", mas porque foi precisamente o "nosso corpo" que serviu em grande medida de motivo para justificar séculos de opressão (e bem antes do capitalismo) e de desigualdade. Foi nele ou através dele que tudo começou e se perpetuou. Foi (e é, muito muito menos claro) nomeadamente por termos formas, peito, vagina, ovários (por causa da maternidade) e por entre um homem e uma mulher, aquando o acto sexual, sermos nós as penetradas, que fomos, de diferentes formas, durante séculos, remetidas para a esfera privada, sujeito passivo, sem direitos, cujo destino era o de estar ao serviço do homem, de ser mães, objectos decorativos e para o prazer de outrem, que a nossa atenção e leitura deve ir mais além porque esta, como outras, publicidade é "situada". Situada em sociedades que têm este LONGO histórico e que apesar da emancipação e afirmação das mulheres, da consagração da igualdade de direitos, e de todo e do longo caminho percorrido, ainda não deixaram de ser sociedades patriarcais.
O último post do Bruno é a esse respeito muito bom e revejo me totalmente nele:
"Mais problemático, e porventura surpreendente, foi ver tanta gente embarcar na ingenuidade do mito da simetria, algo que um pouco de sensibilidade sócio-histórica deveria ser capaz de exorcizar.
Em vários momentos da discussão política, muita gente saca da fácil arma da simetria, tão depressa como do anúncio da Coca-Light (o facto de ser um marco por todos recordado deveria ter feito feito tocar as sinetas, mas não), como se não houvesse uma história de menorização, opressão e coisificação das mulheres enquanto serviçais do homem, objectos passivos de desejo, seres destituídos de autonomia e de auto-determinação. Como se não houvesse diferença na leitura que fazemos de anúncios que (como o da Coca-Cola Light) parodiam, invertem e subvertem valores hegemónicos, por oposição aos anúncios que reificam os valores hegemónicos – no caso do da Stout, não porque queira estetizar o erotismo da dominação, mas apenas porque se julga sofisticado na sua óbvia boçalidade."
Não alinho em pedidos de proibições ou coisas do género [o Tiago chama-lhe deriva regulacionista :)], nada disso. Mas não deixo de considerar importante reflectir, debater, alertar, criticar, denunciar, o que quiserem, sobre as representações e as imagens veiculadas quando estas nos parecem ir no sentido contrário ao que defendemos: e aqui de um ponto de vista emancipatório claro. Há várias formas de o fazer: escrevendo sobre na net ou nos media; através de investigação-acção; com boicotes ou com mails, cartas, protestos, à empresa promotora da pub, entre outras. Bem sei, Diogo, as "regras do jogo" quando falamos em publicidade e no mercado, mas nunca esquecer que as conquistas que hoje temos e aquelas que ainda pretendemos alcançar também passaram e passam pela crítica cultural, pela descodificação, desconstrução, de imagens, referentes, etc, e pela disputa e crítica de significados e de representações, não que a publicidade tenha que ter uma função pedagógica, não tem que a ter, mas se pudermos dar o nosso contributo para que venha a ter qual o mal? E acima de tudo: não será também essa uma luta que nós devemos travar?
Como bem disse o Tiago num comentário, "um contexto social reflexivo e crítico [que queremos promover] também se constrói na luta simbólica pelos imaginários e representações prevalecentes no espaço público, onde se encontra, por exemplo, a publicidade". Não a desvalorizemos então e façamo-la!

Um comentário:

Andrea Peniche disse...

É isso mesmo! Clap, clap, clap, clap, clap.

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