Da Califórnia

O sonho americano adquiriu um significado particular na Califórnia do pós-guerra. Por um lado, a duas décadas de grande expansão económica que se seguiram ao final da segunda guerra mundial confirmaram a profunda suburbanidade da sua promessa de prosperidade. O sonho que durante décadas alimentou o imaginário da classe média Californiana vivia na em casa própria, com jardim e garagem para dois ou três carros. Por outro, o investimento público adquiriu um papel de destaque como mecanismo para fazer face ao alto nível de crescimento populacional. O grande desenvolvimento de infra-estruturas seguiu a tendência nacional, mas o que realmente distinguiu a Califórnia no contexto americano foi a instauração de um dos melhor reconhecidos sistemas de educação superior pública a nível mundial. Refiro-me não exclusivamente à Universidade da Califórnia, mas ao sistema tripartido de instituições de ensino superior cujo acesso é baseado em padrões exclusivamente meritocráticos (terá que ficar para outra altura a discussão dos limites da meritocracia...). É este sonho educacional que se agora se ameaça desfazer (já que o sistema de ensino básico começou a degradar-se logo nos anos 70). O que o explica?

Paradoxalmente (ou talvez não), tudo começou nos subúrbios. Por alturas dos anos 60, um autêntico movimento contra-hegemónico de "guerreiros suburbanos" começou-se a formar na direita conservadora. Tal como a Lisa McGirr mostra de forma brilhante, foi a classe média suburbana da Califórnia que organizou o poderoso movimento conservador que viria a pôr o Ronald Reagan na Casa Branca e contribuir de forma determinante para o deboche neoliberal dos anos 80 e 90. Foi também deste movimento de detentores de casa própria que surgiu a Prop 13; a proposta de lei que viria a ser votada e aprovada em referendo nos final dos anos 70 e que estabelece limites severos no aumento anual do imposto imobiliário. Ao reduzir de forma drástica o montante da colecta estadual, ficaram criadas as condições para a actual crise financeira e o subsequente desinvestimento na educação contra o qual muitos de nós saíram para as ruas na passada quinta-feira.

3 comentários:

Hugo Dias disse...

Ricardo, sê bem-vindo ao Minoria Relativa. Lembro-me bastante das obras do David Harvey quando falas do modelo de (sub)urbanização americano, sobretudo de "Paris, Capital da Modernidade". Em texto mais recente, publicado na New Left Review ele retoma esta análise em torno do "Direito à Cidade", enquanto direito humano.

"The suburbanization of the United States was not merely a matter of new infrastructures. As in Second Empire Paris, it entailed a radical transformation in lifestyles, bringing new products from housing to refrigerators and air conditioners, as well as two cars in the driveway and an enormous increase in the consumption of oil. It also altered the political landscape, as subsidized home-ownership for the middle classes changed the focus of community action towards the defence of property values and individualized identities, turning the suburban vote towards conservative republicanism. Debt-encumbered homeowners, it was argued, were less likely to go on strike. This project successfully absorbed the surplus and assured social stability, albeit at the cost of hollowing out the inner cities and generating urban unrest amongst those, chiefly African-Americans, who were denied access to the new prosperity."
http://www.newleftreview.org/?view=2740

Hugo Dias disse...

Sobre a actualidade é de assinalar, na minha opinião, que apesar de quase dois anos de "crise", e de assinaláveis convulsões sociais, ainda não assistimos a uma crise de hegemonia do neo-liberalismo, ou de um pós-liberalismo, como diria o outro.

Ricardo Cardoso disse...

Longe de mim sugerir tal coisa, Hugo! Particularmente se considerares o neoliberalismo como um sistema de consolidação do poder de classe, a la Harvey da Breve História do Neoliberalismo. Aqui, no Democracy Now: http://www.democracynow.org/2009/4/2/marxist_geographer_david_harvey_on_the

Postar um comentário