M'espanto às vezes, outras m'avergonho da indiferença blogosférica relativamente ao suicídio do miúdo de 12 anos, na sequência de episódios repetidos e focalizados de perseguição e humilhação pelos colegas. Se a violência na escola ganhou proporções mediáticas extravagantes por causa de problemas disciplinares essencialmente anedóticos (mas não por isso menos merecedores de censura social), tal como alimentou um debate metafísico e não raras vezes oportunista sobre o assunto (peço desculpa à esquerda que não gosta de traidores mas não incluo aqui Helenas Matos, que às vezes até sabem o que dizem e dizem-no bem), o conhecido fenómeno do bullying tem entrado na agenda pública bem mais de mansinho. Arrisco pensar que o facto de não baralhar o (importante) esquema de autoridades formais no contexto escolar e de beneficiar do mito rousseauniano aplicado aos catraios o tem feito gozar de uma tolerância generalizada verdadeiramente bárbara. Embora acredite que a vigilância e a atenção prestada ao fenómeno sejam progressivamente maiores, gostaria de ver Pinto Monteiro tão empenhado na resolução deste problema tal como o vimos há uns anos alertar os parlamentares para o défice de autoridade dos professores, motivo pelo qual conferiu (contra a vontadinha de Lurdes Rodrigues) prioridade de investigação criminal à violência escolar (cf. art. 3º, alínea a).
Caso o Ministério Público ainda não tenha reparado, bullying é violência escolar e o suicídio não teve com certeza causa natural. Mas pelos vistos dá-lhe tanta importância quanto à fuga de informações em segredo de justiça.
12 comentários:
O pior é que há muita gente que pensa que o "bullying" é uma forma de "construir carácter", uma resposta natural de garotos saudáveis à violência que é a endoutrinação escolar, estravazando a sua raiva e frustração aos "marrões", que consideram uns "vendidos ao sistema", ou uma forma de os gordinhos, os feinhos, os "quatro-olhinhos", os pobres e os mal-vestidos aprenderem logo desde cedo o seu lugar "natural" na sociedade. Para não falar dos "bullies" que descarregam sobre os outros a porrada que levam dos pais em casa, perpetuando assim a sustentabilidade de métodos educativos autoritários e causadores de seríssimas distorções sociais. Isto para não falar que, em escolas onde predominanm miúdos dos estratos populares, os "marrões" são vistos como arrogantes, arrivistas sociais e possíveis aspirantes a posições na sociedade que estão "acima da sua condição". Por isso, é bom que lhes façam "baixar a bolinha". Resumindo e concluindo: O "bullying" tem uma função "higiénica" na sociedade. Por isso é que tem demorado tanto a ser problematizado na esfera pública.
Não estou a dizer que os "bullies" sejam santos e puros, mas é normal qualquer indivíduo ou grupo reagir com aversão mais ou menos violenta ao que considera "fora da norma" ou ao que simboliza prácticas que contradizem o seu bem-estar. Porque será que a escola despoleta tanta raiva e violência nos miúdos? Não será hora de pôr a instituição escolar em causa tal como a conhecemos?
Os "bullies" não serão miúdos revoltados com o vazio rotineiro e a hipocrisia do mundo adulto, tornando-se assim rebeldes que extravasam a sua violência sobre aqueles que no seu ponto de vista representam tudo aquilo que a sociedade os quer obrigar a ser e que eles sentem como uma violação da sua personalidade?
Penso que traça(s) um retrato muito conseguido das motivações, dos nexos e do modus operandi do fenómeno. Penso aliás que a escola em geral e os profissionais educativos em particular (e paizinhos) deve ser responsabilizados pelas práticas violentas que ocorrem sob a sua tutela e às quais tendem a reagir com uma combinação explosiva de indiferença, selectividade infundada ou mal fundada e relativização. Tal como compreendo a latência simbólica e sociológica que está na origem da violência física e psicológica produzida ou reproduzida na escola. Só não concordo com o último comentário: o «vazio rotineiro» não me parece, por si, factor potenciador, tal como não acho o fenómeno uma réplica da «hipocrisia do mundo adulto». O vazio também faz falta - o problema está na forma como é experienciado - e a hipocrisia é condição indispensável da vida social. Interpretar o bullying como uma reacção ideológica inconsciente pode ajudar a explicar alguma coisa, mas não tudo.
Seria interessante saber quais são, de facto, as características tanto dos agressores como dos agredidos. Falo de características físicas, familiares, económicas bem como o seu aproveitamento escolar. Sem isso é difícil entender o fenómeno com rigor.
Não sei se este será apenas um fenómeno que vem por arrasto a uma progressiva perda de aceitação do exercício de autoridade dos adultos mas valerá a pena explorar a possibilidade.
Finalmente, e digo-o sem pinga de sarcasmo, creio que seria importante dar um nome português ao fenómeno. A consciencialização pública depende, em parte, disso.
O pior é que há casos de pais e até de professores que estimulam o "bullying" de forma mais ou menos consciente. Dos pais que acham que as tareias que os seus "rebentos" dão aos meninos magrinhos, de óculos ou aos marrões são uma prova de que eles são "machos" e que além disso até estão a fazer uma favor às suas presas ao dar-lhes uma lição de "masculinidade". Isto para não falar daqueles pais e até professores que vêm os "marrões" como possíveis competidores dos seus "rebentos" no acesso a lugares na universidade e mais tarde a empregos prestigiosos e bem remunerados. Por isso, toca a instigar a violência e a maledicência para destruir os "rivais" dos seus filhos. Além diso, ao estimular esses comportamentos na sua prole, estão a dar-lhes uma lição de "competitividade" num mundo cada vez mais "cão"... E ai de quem ousar "brilhar" mais do que os seus "cachopos", não vá isso se reflectir negativamente na imagem pública dos paizinhos, que podem não ser tão brilhantes e dominantes na "ordem da bicada" quanto pensam... Isto para não falar dos professores que ensinam não por vocação, mas por não terem conseguido outro emprego e que descarregam as suas frustrações em miúdos que têm o potencial de virem a ser mais felizes e realizados que eles... Descarregar esse que muitas vezes acontece de forma muito subtil, através do "fechar de olhos" ou até do encorajamento subtil do "bullying"...
A Ana Margarida Esteves está hoje muito negativa... Esses cenários dantescos, quer-me parecer, serão raros.
Talvez seja melhor cinjirmo-nos a questões mais tangíveis, como o Estatuto do Aluno e a necessidade de legislar acerca dos horários de trabalho por forma a garantir que os pais e encarregados de educação possam participar das actividades escolares - reuniões, convívios, etc. Que tal?
As consequências da mediatização destes fenómenos são extraordinárias. Com a atenção virada para os responsáveis políticos, estes apressam-se a legislar a quente, muitas vezes ad hominem, sem qualquer tipo de memória histórica e com resultados previsivelmente inúteis. Neste caso, e como o Tiago parece querer, manda-se para lá polícia (à futrica como o Johnny Depp no 21st Jump Street) ou "reforça-se a autoridade dos professores" (sublinhe-se autoridade).
O País fica mais calmo e com o sentido de justiça apaziguado.
O facto é que uma andorinha não faz a primavera e, pelo que me apercebo, nos últimos 15 anos serraram os cornos aos touros - não me esqueço da minha escola e do tempo que fugi de gangues e de delinquentes com navalhas e matracas e essas merdas.
A Frederica refere muito bem o que devem ser as prioridades políticas no meio escolar (excepto, claro, uma maior atenção à distribuição arbitrária de dinheiro para a construção do parque escolar).
A importância da criação de condições de trabalho estáveis e de incentivo à participação dos encarregados de educação na vida escolar trariam, digo eu, melhores resultados que qualquer "abordagem directa" de tentativa de resolução das touradas.
Não, não estou a ser negativa. Estou apenas a ser realista e a falar de realidades que, infelizmente, conheço bastante bem. Concordo que a legislação sobre horários de trabalho para permitir que pais e professores possam colaborar de forma mais activa é fundamental, sobretudo para expôr e corigir esses comportamentos perversos. Assusta-me esse renovado ênfase na "autoridade" e na repressão policial. Uma forma de reprimir, de forma autoritária e a lembrar "o tempo da outra senhora", os efeitos de uma certa forma de "des-"educar? Lançar para debaixo do tapete, com medidas correctivas e repressoras, os efeitos de um sistema insustentável?
Políticas públicas e medidas inclusivas são naturalmente contributos importantes para a atenuação do fenómeno. Muito embora o défice de participação dos pais na vida escolar nem sempre decorra de constrangimentos funcionais e laborais, antes sociais e culturais. Em todo o caso não lido com a autoridade (legítima) como manifestação reaccionária e anacrónica do antigo regime. A percepção pública e psicológica de segurança é naturalmente co-construída por diferentes actores e interesses que disputam hegemonia sobre a interpretação do espaço e do contexto. Contra as derivas românticas e irresponsáveis eu não só admito como encorajo, em momentos precisos, a demonstração da autoridade, não apenas pelo seu potencial de eficácia material mas igualmente simbólica e pedagógica. Isto não significa policiar as escolas a torto e a direito, até porque a formação dos agentes policiais é, como sabemos, merdosa: mas compreender a importância de uma Comissão e Protecção de Menores vigilante e dotada de meios eficientes de intervenção quando, por exemplo, a escola e a família não respondem à gravidade dos problemas sofridos por miúdos em espiral de vulnerabilidade. A sustentabilidade das lógicas de poder destrutivo entre as crianças e adolescentes depende em grande medida da perda de confiança nos seus mecanismos correctivos: um miúdo é invisível e não faz queixa porque sabe antecipar os seus custos efectivos, para além da indignidade da queixa em determinados códigos de sociabilidade juvenil. Em contextos desiguais a liberdade é opressão e reprimir emancipar. By the way: os indivíduos têm o direito a ser ingénuos. Ponto. Tanto na escola como na Ribeira do Porto. Ou não é assim?
Tiago:
1. "Em contextos desiguais a liberdade é opressão e reprimir emancipar." Pareces o Rafael a falar de Cuba.
2. "Comissão e Protecção de Menores vigilante e dotada de meios eficientes de intervenção". Discurso perigoso quando a formação desta gente é ainda pior do que a da polícia e redunda em sistemáticos casos de injustiça e que, estando a falar de relações entre crianças, torna tudo ainda mais melindroso.
3. Começas o teu comentário com a ideia precisamente contrária ao que poderei considerar aceitável. São as medidas correctivas que poderão dar um contributos importantes, mas nunca prioritários. Não imagino sequer em que te baseias para afirmar que as lógicas de poder destrutivo entre as crianças sustentam-se na falta generalizada de medo e respeito - depreende-se das tuas palavras. O recinto escolar, onde as crianças terão de viver diariamente, não é a Ribeira do Porto. Falamos de locais em que a interacção entre os alunos se torna obrigatória diariamente e não basta enxotar os meliantes para outro lado qualquer. Para além de que são fenómenos de violência completamente diferentes (a ingenuidade está nos dois lados nas escolas) e o olhar atento dos funcionários e professores serviriam o propósito suficiente de dissuasão da prática generalizada de violência mais extrema nas escolas - que, diga-se, não acho sequer que seja um problema grave.
AP,
Há casos bem e mal conduzidos e decididos na protecção de menores. Correcto. Reporto-me às responsabilidades públicas que detém perante as crianças em risco. Pelo que me limito a chamar a atenção para a necessidade de se partir de uma noção mais ampla de risco que, por vezes, é agravado com fenómenos de bullying, culturalmente enquadrados com a ligeireza do «recreio escolar». A actuação da protecção de menores deverá ser subsidiária face à escola e à família? É natural, mas se queres que te diga desconfio que o suicídio do miúdo não seja produto exclusivo dos colegas da escola. Há com certeza mais factores potenciadores ou, em linguagem televisiva, culpados. That's why.
Quanto à vida escolar, lamento mas não há ingenuidade dos dois lados: há os que dão (porque podem dar) e há os que levam (porque, como bem dizes, são forçados à copresença e não são suficientemente competentes). É como os cães que mordem: «a culpa é tua porque mostraste medo» - o caralhinho. Não se trata de enxotar meliantes, trata-se de cortar as pernas aos campeões da impunidade (foda-se, pareço do CDS) que, como sabemos, não nascem assim, mas são fabricados - também - na escola. E isto deve ser feito com a comunidade escolar e com os pais, sem dúvida: sobretudo para ser eficaz.
Quanto à autoridade, lembro-te que «repeito» é palavra de ordem dos gunas. Por mim, os meninos deverão beneficiar de toda a política social do mundo, mas sobretudo em nome da protecção dos gajos que eles assaltam e ameaçam. E sim, sou a favor do rendimento mínimo. Até do basic income. Não me confundam :)
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