Porreirismo e educação sexual

A amiga Andrea Peniche enviou-me há dias dois ou três exercícios de educação sexual, para o 1º ciclo, prescritos num manual patrocinado pela sagrada Associação de Planeamento Familiar. Entre outras coisas, consistiam, em sala de aula, na exposição dos corpos das crianças às mãozinhas dos colegas e no convite ao débito de sinónimos ordinários comummente atribuídos ao pénis e à vagina. Ora vede*:

Algumas notas:

1. O ensino da saúde sexual e reprodutiva é da máxima urgência na escola pública. Saúde sexual e reprodutiva não é sexualidade. Abordar, discutir e desconstruir o fenómeno sexual nas sociedades contemporâneas não é ensinar os meninos a pinar nem, por Deus, descomplexá-los.

2. A sexualidade é uma dimensão importante não apenas da vida social como da vida íntima e privada dos cidadãos. O facto de ser íntima e privada não significa que não seja política e não produza ou reproduza relações de poder. O facto de ser política e produzir ou reproduzir relações de poder não significa que deixe de ser íntima e privada. A escola pública não ensina nem certifica correcção ou competência sexual.

3. Estes joguinhos são graves, invasivos e perigosos. Não será preciso evocar Norbert Elias para se compreender a complexidade e ambivalência do estatuto do corpo na construção identitária. As crianças não se vêem? As crianças não se tocam? Sim e sim. Mas não é preciso enfiar um voluntário no meio da sala a bater uma para saber se já se vem (em que idade nos vimos, professora?) e desfazer o tabu da masturbação.

4. Trazer o calão para a sala de aula é admissível em dois contextos: na linguística e na poesia. Não é o caso. Cona e piça diz-se - e muito bem -, mas é lá fora.

5. A nossa sorte é que o Abominável César das Neves é grotesco e anedótico. É muito mais simples bater na ideia peregrina - mas muito bem imaginada - da ortodoxia do erotismo do que olhar criticamente para o que se faz na tecnocracia sexual da esquerda moderna. Custa sair do rebanho, não é?

*Os comentários esferografados são de autoria, naturalmente, suspeita. Mas a letra é de merceeiro.

9 comentários:

eduardo b. disse...

Ora.

Andrea Peniche disse...

Aqui a amiga Andrea ficou bastante surpreendida com o uso que deste aos dois ficheiros que te mostrei. Primeiro, porque usas informação descontextualizada para produzir opinião aparentemente fundamentada; segundo, porque confundes sugestões de actividades com currículo; terceiro, porque confundes notas de campo com cartilha.
Fiquei ao menos a saber o que pensas sobre educação sexual. Teria sido mais útil, do meu ponto de vista, se pensasses simplesmente em vez de usares informação descontextualizada, de ignorares o trabalho contínuo, persistente e - agora digo eu - muito recomendável da Associação para o Planeamento da Família. Sobretudo porque acho que estás a ser tremendamente injusto.

sandra silvestre disse...

ontem à noite este post não tinha ainda as imagens dos manuais e achei por bem nem comentar pois mais parecia brincadeira...

agora com o comentário da andrea fica claro que é muito grave que se divulguem documentos desta forma e aproveito para deixar o link do Kit da apf para o 1º ciclo http://www.apf.pt/cms/files/conteudos/file/Noticias%20e%20destaques/Junho%202010/Corpo%20das%20palavras_final.pdf

Ricardo S. Coelho disse...

A única coisa que me chateia mais que o conservadorismo de direita é o conservadorismo de esquerda.
"o Abominável César das Neves é grotesco e anedótico" - assino por baixo. Mas o que és tu quando comparas jogos destes a ter um gajo a masturbar-se em frente aos alunos?
"Cona e piça diz-se - e muito bem -, mas é lá fora" - é precisamente por causa deste tipo de pensamento que a educação sexual não avança. Quem vive neste mundo sabe que os miúdos aprendem desde novos todos os palavrões que existem, todos os sites pornográficos, todas as brincadeiras brejeiras, etc. Mas ainda há muita gente, infelizmente, que acha que não se deve falar disso na sala de aula. Assim se perpetuam tabus.
A educação sexual não serve unicamente para evitar doenças e gravidezes, serve para educar para a sexualidade e para os afectos. Isso implica falar mais abertamente sobre o corpo, sobre o sexo. Se isso te choca não estás tão longe do César das Neves como pensas.

magda alves disse...

Obrigada Sandra. Tiago, para além de ter ficado clara a tua visão sobre educação sexual nas escolas, em quê é que estes exercícios "ensinam ou certificam correcção ou competência sexual"?.
Cada um/a é responsável pelo que escreve, a contextualização que julga que deve dar ao seu post ou não, os motivos pelos quais o faz, sabendo as leituras (os efeitos, os aproveitamentos, etc) que sabe que o seu post ou não poderá ter . Até gostava de saber de quando datam esses exercícios mas digo te já que não me chocam, até porque esses exercícios têm mediadores/as como bem sabes (neste caso o/a prof). De qualquer forma,e percebendo, ainda assim, que possam levantar dúvidas, nunca podem ser a meu ver arma de arremesso para pôr em causa o trabalho (que tu "de certeza" que conheces ou se calhar não...) consistente, ao longo dos anos, (re)conhecido e validado, como a andrea bem o disse no seu post, da APF (ora tu sabes Tiago que é o que está a ser feito de forma bem tenaz e organizadérrima como sabes, e sabes também os motivos e as concepções que lhes subjaz) . Tiago, se temos que ser exigentes/críticos com qualquer organização e os conteúdos que ela veícula? Temos sim senhora. Mas há tempos, retóricas, diferentes formas de o fazer e diferentes espaços para o fazer. Escolheste esta e estes, tu lá sabes. Quanto ao "rebanho", em matéria de direitos sexuais os teus posts mostram uma coisa: estás feito (sempre estiveste?) num verdadeiro pastor de bancada..

Tiago Ribeiro disse...

Andrea,
1. Os exercícios fornecem-me elementos suficientes mas uma crítica fundada aos seus pressupostos e efeitos. Essa deriva contextualista é um bom refúgio para atrair atenções para retóricas redondas e bem intencionadas e subestimar os conteúdos que, à sua pala e acriticamente, vão avançando. Confiar no alegado contexto é assinar de cruz.
2. A APF é uma organização com um trabalho meritório e inigualável no domínio da saúde sexual e reprodutiva. Não tenho dúvidas quanto a isso e não preciso de lhe escrever um soneto. Mas não deve estar isenta de escrutínio no debate público.
3. Da minha crítica aos exercícios não é possível depreender um manifesto ou uma posição perante a educação sexual nas escolas. Tão só chamei a atenção para a excessiva tolerância da esquerda aos conteúdos propostos, dirigindo os seus cinco minutos de ódio diário ao inimputável das Neves. Não me parece razoável deixar à direita paranóica o monopólio da crítica.

Sandra,
Não percebo a gravidade da divulgação de exercícios que podem ser dinamizados em escolas públicas. O efeito contexto tem as costas largas. Permite-me a ousadia de te desafiar para, a cada crítica ao conservadorismo, anexares a Rerum Novarum.

Kandimba,
Veja lá se é comido por tabus. Os sites pornográficos são óptimos, mas não obrigue os catraios a discutir na escola se preferem colegiais ou chinesas. Cada linguagem tem um enquadramento próprio e é demasiado naïf pensar que a limpeza vocabular na escola é repressão. Nenhuma criança sente angústia existencial por dizer pénis na aula e piça no intervalo. O mundo é mesmo assim, não se preocupe. Em matéria afectiva e sexual, não admito que o Estado meta o bedelho. Ponto. Tenho aliás nojo por especialistas e diplomados em afectos. Depois o moralismo é da Igreja Católica, claro.

Magda,
Sobre clareza e contexto já me pronunciei. Se o teor do meu comentário pode induzir leituras conservadoras? Até pode. Basta ver a leitura que tu fazes do que eu disse e comprova-se que se presta a muita coisa. Not my fault. Não pus em causa o trabalho da APF. Sair em defesa da APF como quem canta o fado é imputar-me uma crítica que não fiz. Finalmente, a do pastor de bancada é rasteira e não merece resposta.

Miguel Serras Pereira disse...

Caros Interlocutores,
embora compreenda a incomodidade que a posição assumida pelo Tiago Ribeiro causa, pelos melhores motivos, nalguns dos que aqui se exprimem, creio que ele tem razão no fundamental, quando denuncia, se o leio bem, um projecto de educação do desejo e dos afectos visando a perfeita correcção da sexualidade ou das pulsões. Teríamos, então, não só regras democráticas, mas uma sociedade em que estas, as leis, usos e costumes, seriam naturalizadas ou "educadas" a um tal ponto que perderíamos, em relação a elas, a distância que nos permitiria criticá-las, propor a sua substituição, refazê-las. E os palavrões na sala de aula são um bom exemplo: eu diria que, se a coisa for por diante, nos resta esperar que as crianças inventem outros e os escondam dos adultos e professores, mantendo-os incorectos e inconfessáveis.
A educação pode e deve exigir ou promover comportamentos correctos e aceitáveis. Mas pode e deve tentar também transmitir aos educandos que estes têm direito a desejos e fantasias que não poderão passar ao acto impunemente, mas que não serão punidos nem tornados tema de confissão obrigatória se souberem mantê-los "íntimos". E pode e deve transmitir-lhes também a ideia de que a sala de aula e outros espaços comuns e públicos não são nem devem ser lugares de exposição da intimidade pulsional, do mesmo modo que há uma esfera pulsional e íntima que, sofrendo embora indirectamente os efeitos da socialização necessária que a educação e a escola visam produzir, não devem ser directamente escolarizados ou "educados" em termos públicos.
Nesta ordem de ideias, poderia retomar aqui dois posts que, recentemente, publiquei no Vias, não sobre a escola, mas a propósito do futebol. A título de achega para a discussão aqui ficam os links:
e


Com as melhores saudações libertárias

msp

Miguel Serras Pereira disse...

Bom, os links não ficaram, mas são:

http://viasfacto.blogspot.com/2010/07/competicao-diferenca-e-desigualdade.html#comments

e

http://viasfacto.blogspot.com/2010/07/democracia-perante-incorreccao.html#comments

msp

LM disse...

Meu querido João de Deus...

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