O candidato Nobre afirma-se transversal politicamente e acaba por ser transversalmente anti-político. Isto porque a sua transversalidade se constrói num campo paradoxal, simultaneamente transpolítico e apolítico porque pretensamente supra-político. Nada de novo nesta tentativa de constituir um campo político através da constante desvalorização da política, sendo aliás uma característica típica dos discursos populistas.
Esta transversalidade é, em primeiro lugar, uma transversalidade do ego. A transversalidade do ego opõe-se à política no sentido em que a pretende ofuscar pelo seu brilho humanista, em que tem necessidade de reconstruir o passado para criar distância da política e em que o próprio ego se sobrepõe às suas propostas.
Acentua-se o brilho humanista do ego do candidato que faria a diferença nas eleições, enchendo esse ego o espaço que se esvazia de conteúdo político. O senão é que para que o brilho humanista dure uma campanha inteira é preciso que o próprio candidato constantemente utilize a ajuda humanitária como crédito eleitoral. Isto obriga-o a uma repetição das suas virtudes, a um processo de auto-heroificação e a um desgaste da aura que, num país de falsas modéstias, pode não ter fôlego suficiente.
Mesmo que a suposta aura resista, a transversalidade do ego necessita de uma distância para com a política que se vai traduzindo numa relação difícil com o passado. Não podendo correr o risco de ser tido como político, Nobre parece sentir necessidade de ir apagando o rasto das suas ligações à política (e foram tantos os apoios eleitorais…) porque dariam imagem de um ser politizado, envolvido, conspurcado com a política, inserido no sistema. E uma transversalidade assim só pode pairar acima de e nunca sujar as mãos com a política.
E mesmo onde há propostas políticas, elas dependem de não serem consideradas como um programa político, e portanto de serem formas de uma política débil, de uma apolítica humanitária, e de não serem avaliadas pelo seu valor facial. Os exemplos apresentados no primeiro frente-a-frente das eleições presidenciais são exemplos da procura da quadratura do círculo, de fazer política não a fazendo. Sobre a crise, pode-se falar de uma política de criação de empresas sociais sendo que tal não faz parte das competências do presidente e sendo que isso, mesmo sendo importante, não a enfrenta directamente. Sobre o clientelismo, a corrupção, etc. pode-se falar de um portal na internet para a transparência sendo que não é através de um portal que se resolverão os problemas. Sobre as relações de trabalho, pode-se falar em salário mínimo europeu sem se comprometer com um valor e sem se esclarecer se se trata de reduzir fortemente o salário mínimo no norte da Europa ou se se tratar de elevar o salário mínimo no sul da Europa para níveis que os patrões diriam incomportáveis. Assim, a transversalidade do ego (a)político apaga a natureza política da mensagem produzindo um quase-zero de política. Este anuncia-se no discurso através de um esvaziamento simbólico da política que seria a redução do número de deputados e que faz já parte da transversalidade num segundo sentido.
Esta transversalidade é, em segundo lugar uma transversalidade de maus fígados face a uma entidade vaga que é “a política”. A transversalidade dos maus fígados opõe-se à política na medida em que é uma tentativa de captura do pior senso comum de que “os políticos são todos iguais”. Ao fazê-lo desconsidera o cidadão comum para o qual julga falar porque o reduz a estes maus fígados anti-políticos e ao senso comum mais rasteiro, porque apenas se quer aproveitar do que de mais reactivo existe nele. É o cruzamento entre a transversalidade do ego próprio e a dos maus fígados que se supõem comuns ao comum dos mortais que faz resvalar necessariamente o campo da Nobre política para a anti-política, tendo-o levado ao exagero de igualizar todos os políticos: todos apenas verborreicos, todos do sistema, todos culpados da crise. Assim, o candidato cometeu no debate televisivo a injustiça de o colocar no mesmo saco dos criadores da crise, apresentando-se, quando faz obra humanitária, como criador empregos e esquecendo-se que (e não é ironia) o PCP terá criado directamente mais empregos nos seus quadros do que ele e que certamente sempre lutou pela criação de emprego.
E, com a crítica do “todos iguais”, é todo o seu projecto que se apresenta como confuso: a sua transversalidade pretende incluir todos os num governo de salvação nacional, sendo assim um milagre político apolítico, incluir aqueles que apoiam o “orçamento possível” ou exclui-los todos numa manobra populista e demagógica? A ser eleito, o candidato propõe-se através do seu ego unir magicamente o que a política separou ou ser o destabilizador anti-político no coração da política, o anjo vingativo do cidadão comum para destruir todo o sistema que conspirou para a crise?
Claro que é preciso considerar esta transversalidade ainda como, em terceiro lugar, uma transversalidade das boas intenções. Esta é necessária para dissolver a afirmação do ego que ameaça a auto-destruição política e para contra-balançar o espírito negativo do anti-político. Apesar de não estar isenta da sua ameaça destes dois aspectos porque necessita, para ser operante, de um monopólio das boas intenções do seu lado e do maniqueísmo de se opor aos políticos mal intencionados do outro lado. As boas intenções opõem-se desta forma à política na medida em que se colocam para além dela. Não pesando assim consequências, não fazendo escolhas (as boas intenções estão sempre do lado certo contra as más), colocando numa universalidade eterna que não se compadece com a concretude suja das linhas de confronto da sociedade.
Fecha-se assim um círculo que é constantemente reforçado pelos apelos ao sentimento. A transversalidade Nobre é, sobretudo, uma apolítica sensível que tem mobilizado as imagens da pobreza para mascarar uma pobreza de ideias.
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