Midas Coelho: o toque e foge


Ganancioso, Midas terá cobrado um favor prestado ao deus Dionísio escolhendo receber o dom de transformar em ouro tudo o que tocasse. E fez escola. Não só pela ganância de querer transformar tudo em lucro mas também pela credulidade na magia salvífica de um toque. Hoje, os beatos do toque mágico transubstanciaram-no na mão do mercado que seria bastante para transformar em ouro o que não tem valor nas mãos públicas de um Estado esbanjador e mal organizado. Claro que o mito só vale politicamente porque se apoia num sentimento difuso já instalado anti-Estado, anti-funcionários públicos e anti-partidos, num discurso pseudo-positivo da sociedade civil e da cidadania boazinha. A preto e branco, onde estivesse o Estado estariam apenas parasitas enquanto que os privados seriam a redentora “cidadania” da economia.

Basta ligar a televisão e ver que Midas foi à escola e está nas ruas. E que este discurso se reproduz na integralidade na polémica sobre os contratos de associação entre o Ministério da Educação e escolas privadas. O ensino público seria a escola dos desperdícios e dos problemas, o mágico toque privado acabaria com todos os problemas introduzindo eficácia. Fora dessa narrativa ficam os lucros obtidos pelo espezinhar dos direitos de muitos/as professores/as do ensino privado e ficam os “resultados” obtidos tantas vezes à custa da possibilidade da escola de seleccionar os/as alunos/as com melhores classificações à partida.

Fanático do toque de Midas da privatização, Passos Coelho, iniciou a segunda vaga de liberalização extrema do seu discurso. Depois de uma primeira vaga com a proposta de revisão constitucional e a liberalização dos despedimentos, a que se seguiu um colocar água na fervura, vem agora uma segunda vaga com a ideia da privatização de todas as empresas do Estado que dêem prejuízo. E desta segunda vez também foi necessário colocar água na fervura: que não era necessariamente fechar o que tem valor social e que se tinha era sobretudo de ver as contas… Midas Coelho toca e foge nas suas declarações, inseguro da popularidade de um liberalismo tão extremo ou preocupado em acabar por ter de dar o dito pelo não dito se não houver lugares suficientes para instalar a clientela partidária laranja. Mas tem sido assim mesmo, primeiro diz o que lhe vai na cabeça, e quando o faz é o mais liberal dos liberais, só depois vem o polimento político temeroso de mostrar muita sede em ir ao pote.

Quando se cruza a voz deste Coelho exaltado contra o Estado que o centrão construiu e que coloca o tom de denúncia para afirmar que há por aí uma empresa pública de transportes que gasta mais do que as Juntas de Freguesia todas, com a notícia do fecho de mais um ramal da CP, desta vez em Portalegre, que deixou o interior norte-alentejano ainda mais mal servido de transportes públicos, encontramos os verdadeiros limites desse toque de Midas. Se tivesse chegado, de comboio que fosse, ao ramal de Cáceres, o toque de Midas teria tornado aí rentável o transporte ferroviário. Mas não chegou. Nem aí nem ao resto do interior. Só chegará eventualmente às linhas suburbanas da CP. É que, mais sensatos do que Midas, os interesses económicos dominantes que se têm servido dos dinheiros do Estado para obterem rendas garantidas, só querem colocar as mãos no que já seja ouro ou que se possa transformar facilmente em tal à custa de despedimentos e de cortes nos serviços. E como o toque de Midas não transformasse em ouro o que poucos ou nenhuns lucros traz, lá estará o toque alternativo de Coelho ou de Sócrates para transformar em lucro o que é público e rentável ou para pagar pelo que seja menos rentável o preço de uma “parceria”.

Sim, Coelho sabia que exagerava. Apesar de acenar com o mito engana-tolos de um toque miraculoso, conhece bem os limites da vontade de privatização. Não quer verdadeiramente privatizar tudo o que não seja rentável no Estado e que os privados não querem. Só que no reverso do exagero lança a ameaça de, medindo tudo a peso de ouro e de défice, fechar o que não seja rentável em nome do combate ao desperdício. Abrir o ralo dos orçamentos e deitar fora o bebé com a água do banho, extinguindo o que seja socialmente útil. Daí que seja preciso ao mesmo tempo denunciar os desperdícios, os lugares para amigos/as, os Institutos de fachada, todas as práticas institucionalizadas do centrão político nos últimos trinta anos, e reafirmar o que não parece muito popular nos tempos que correm: que o ouro não é a medida do bem-estar e que há serviços públicos indispensáveis para o bem comum, que se deve gastar com eles, que não devem ser objecto de negócios e de especulação.

Qual a amoral da história? Na realidade, a história de Midas parece convergir para um arrependimento amoral: a cobiça não foi desmascarada enquanto negativa apenas a desmesurada estupidez que estava colada: como sabemos, dada a literalidade do dom da transformação, Midas não conseguia sequer comer e por isso teve de renunciar a este. O neo-midismo aprendeu algumas lições: prefere agora o dom do populismo que abre as portas para uma ganância mais selectiva do que a de Midas sobre tudo o que pareça luzir. E através do pretexto do “Estado gordo” pretende realizar uma alteração significativa da distribuição da riqueza produzida.

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