'Foxy Knoxy' ou a herança de Dalila

in memoriam Aileen Wournos

Como se provou extensivamente nos últimos meses, a imprensa americana padece de vícios de forma e conteúdo que serão imponderáveis à luz da tradição jornalística europeia, vícios que a pluralidade não consegue caucionar pelo bipolarismo puritano que pervade todos os quadrantes da cena política e cívica.
Um fait-divers que tem apaixonado alguma América é o caso de Amanda Knox, hoje com 24 anos, acusada de colaborar na tortura e assassinato da sua colega de quarto Meredith Kercher, enquanto se encontravam num programa de intercâmbio de estudantes em Perugia, Itália, em 2007.
Na edição da 4ª feira passada do blogue Global Public Square, a CNN publicou um artigo de opinião de Sarah Stillman que inaugura a expressão 'Foxy Knoxy', um daqueles jogos de palavras que ficam a tilintar nos ouvidos e que os americanos, na linha das 'nursery rhymes', tanto apreciam. No artigo de Sarah Stillman lê-se em abertura

'There is something about pretty white girls, bloody knives and the slightest whiff of sex that gets the international news machine humming like nothing else. All three factors merged explosively Monday in a crowded appeals court in Perugia, Italy.'

No seu artigo, Stillman apresenta quatro casos da história criminal americana em que as protagonistas são mulheres - Alice Mittchel (1892), Lizzie Borden (1893), Patty Hearst (1974) e o mais recente da alegada mãe homicida Casey Anthony. A alguém a quem o folclore criminal americano interesse minimamente, a escolha aparentemente aleatória destes nomes para ilustrar o furor jornalístico nacional pela figura da mulher assassina é infeliz: são casos incomensuráveis entre si, em que, perversamente, as motivações pontuais não encontram pontos de ligação senão a figura da mulher - branca.

Na enumeração anódina de Stillman, fala-se em loucura, arrivismo, no síndrome de Estocolmo e, sobretudo, no tal bipolarismo que divide a América entre puritanos e liberais e que permite que se gerem 'casos' em torno da mulher branca e rica que perde subitamente o controlo e se transforma num ícone da contra -cultura ou, alternativamente, numa bruxa de Salém.

Mas Stillman não está a falar dos mecanismos culturais, mentais, ideológicos americanos que geram, em primeiro lugar, o gosto pela história criminal e, depois, pela história criminal que envolve a figura das mulheres como protagonistas. Talvez por estar rodeada pela sua própria cultura intelectual por todos os lados, ou por ser ela própria, branca e rica, Stillman não chega a abordar esse delicioso e perverso processo de construção social da imagem da mulher que embebe todo o tecido social e que a conduz, como agente ativa, a participar da fantasmagoria coletiva da demonização da mulher branca e rica, como defensora ou detratora.

Está por demais evidente que Amanda Knox satisfaz os desejos da imprensa sangrenta; por demais evidente que, por ser privilegiada e americana, terá uma acusação e uma defesa completamente diferentes. Mas será que se fosse negra não o teria também? O que mostrou ao mundo a execução de Troy Davis?

A cultura cívica americana parece ter sempre um ângulo cego, em que os próprios agentes, por mais comprometidos com a sua causa, aparentemente não conseguem discernir os truques da sua própria cultura e as rasteiras dela.

Sem descartar a possibilidade de a argumentação de classe de Stillman ter um fundo de verdade (como o poderia ter tido sobre 'Scarface' e o poder italo-americano ou sobre Troy Davis e as questões raciais), parece me fútil sair em defesa da classe sem ponderar a própria natureza da eleição do tema 'mulher assassina'.

A história de Aileen Wournos, creio, prova o meu ponto de vista.

Nenhum comentário:

Postar um comentário