A sombra do gira-discos


Há muitas maneiras de se conhecer um país. A lista é vasta e maleável: vai da língua falada à organização política, dos mitos nacionais à geometria urbana, dos cheiros dos mercados à composição dos cemitérios. A leitura do último livro de Luís Sepúlveda fez-me pensar numa outra via de acesso: a sombra.

A sombra de um país (ou de uma pessoa) é sempre mais do que a projecção de um passado. A sombra do Chile de que fala Sepúlveda, por exemplo, tem a forma das esperanças revolucionárias do período Allende e das torturas da era Pinochet. Mas tem também a forma da inconsciência dos novos inspectores da polícia que pouco sabem de Villa Grimaldi e o desprezo das pessoas «comuns» pelas histórias daqueles que sofreram.

No livro de Luís Sepúlveda, A Sombra é também a alcunha de um misterioso indivíduo de linhagem familiar anarquista que sussurrava informações importantes à esquerda chilena nos anos sessenta e setenta. Envolvida nos dias de hoje na preparação de um acto revolucionário, A Sombra é fatalmente atingida por um gira-discos arremessado de uma janela no calor de uma discussão doméstica. Confere: a sombra de um país (ou de uma pessoa) é essa estranha presença que volta e meia é atingida por um passado que se julgava obsoleto. E que regressa sempre sob uma outra forma.

Como era aquela coisa da tragédia e da comédia?

3 comentários:

Fabian Figueiredo disse...

Como não fizeram um artigo inicial onde se apresentariam, tive que colocar isto aqui:

Isto vai dar um excelente espaço de debate e de reflexão. Era o minímo que poderia dizer do elenco que compõe este nado vivo da blogoesfera, mas como o Tiago Ribeiro também faz parte dele, acredito que para além de espaço simples de debate de reflexão trará consigo uma onda de "debate de ideias", conflito de ...escolas, polémica e um belíssimo espaço de acesso ao conhecimento. É o prefácio que escrevo para este livro virtual que espero não encontrar o seu último ponto final tão cedo. Força.

Carlos disse...

Um belo livro, de um excelente escritor. Contudo, continuo (continuarei sempre?) a preferir "Encontro de Amor Num País em Guerra".

Bem-vindos à blogosfera.

Paula Godinho disse...

Texto lindíssimo, sobre a memória dos traumas que não só volta, mas está lá sempre. Apetece-me deixar-te aqui um pouco duma conversa do Jesusalém, do Mia Couto, que sirva de complemento aos parabéns pelo novo blog:

"- Quem são esses que agora disparam, pai?
-Esses disparos são ecos antigos.
- Explique, pai.
- Não estão a acontecer agora. São ecos da guerra que já acabou.
- Engano seu, caro Silvestre – afirmou Zacaria.
- Engano como?
- Nenhuma guerra termina nunca."

Mia Couto, Jesusalém

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