A adopção da discriminação (duas leituras)

«Num país onde uma boa parte da população foi educada em seminários, sem a supervisão do sacrossanto casal heterossexual, no país das Casa Pias onde o abuso sexual era considerado normal pela justiça do Estado Novo, causa-me alguma aversão esse calculismo sobre a adopção de crianças por casais homossexuais, sobretudo quando hoje temos dezenas de trabalhos científicos que demonstram que um casal de gays educa melhor uma criança que um bando de padrecos.»
Rui Curado Silva, no Klepsýdra

«Agora está tudo claro: os gays são iguais, mas diferentes. Para menos. Podem casar mas é-lhes vedada a adopção. Vão lá fazer as porcarias para longe das crianças. Fica assim consagrada a suspeição infamante de serem perigosos para o desenvolvimento da infância.»
Luís Januário, n'A Natureza do Mal

3 comentários:

Tiago Ribeiro disse...

A alegação de trabalhos científicos, nesta matéria, tem o condão de ser suicidária, para além de, por regra, inconsistente. Mas como é justamente referido por Rui Curado da Silva, é sempre bom lembrar aos zelosos do cuidado prestado por casais do mesmo sexo às crianças adoptadas (e já estou a ceder à asnice, mas enfim) que a mesma preocupação e vigilância não foram exercidas sobre as instituições que albergam centenas de crianças sob a responsabilidade última do Estado e cujos mecanismos de gestão e padrões de socialização - matéria de política pública escrutinável e responsabilizável - são altamente permeáveis à violência, à opacidade e à discricionaridade, tal como contrários ao bem-estar de crianças em situação de acrescida dependência e vulnerabilidade. Mas isto são alhos. A adopção por casais do mesmo sexo são bugalhos. Separar bem os tópicos é, para além de um indicador civilizatório, uma questão de higiene mental.

Miguel Cardina disse...

Não sou higienista, apesar de gostar da clareza argumentativa. E acho que o retrato que o Rui Curado Silva faz, não esgotando a questão (nem ele o pretenderia, certamente), alerta para um contexto que muitas vezes tem sido esquecido nestes debates. Ou melhor, dois contextos: 1. o facto de tantos de nós termos sido educados «sem a sacrossanta supervisão do casal heterosexual» (na maioria das vezes, com uma catrefada de mulheres à volta, o que não fez das nossas meninas umas fufas sequiosas); 2. o facto de muitas vezes se esquecer que ainda somos (cada vez menos, é certo), um país onde as crianças institucionalizadas (e não só) são maltratadas. Bugalhos que têm qualquer coisa a ver com os alhos.

Tiago Ribeiro disse...

O nexo simbólico que procurei desconstruir é aquele que justifica a não discriminação do casal adoptante pela má qualidade da institucionalização. Os direitos humanos e constitucionais não são subsidiários ou um mal menor. Só isso. A sociologia da coisa já serão outros quinhentos.

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