Nesta obra referencial para a história e teoria da sociedade portuguesa contemporânea, além de desafiar as concepções neoliberais mais sabichonas ou preguiçosas sobre a clássica dicotomia entre Estado e sociedade civil (ok, já sabemos que a tradição marxista há muito a resolveu, não sem menos ligeireza doutrinária, como é apanágio), Boaventura de Sousa Santos trabalhou a noção de Estado heterogéneo (mais tarde migrada para Sul para dar conta do fenómeno do pluralismo jurídico em contexto pós-colonial) com a ajuda de duas versões particulares de sociedade civil: a que lhe é íntima e a que lhe é estranha.
Ora intimidade e estranheza são conceitos que, entre outras coisas, dependem dos níveis de confiança depositados no interlocutor. Quando aqui ironizei uma nova geração de políticas sociais que amparava um sector bancário parasitário e critiquei o grau desproporcionado de invasividade associado aos beneficiários da velha geração de políticas sociais (os pobres e assim), falei, nomeadamente, de relações fiduciárias.
Acabámos de saber que o Tribunal de Contas (TdC) chumba o aval do Estado ao BPP «por não existirem certezas de que o banco possa pagar o empréstimo». Meter assim as mãos no fogo por alguém - com as mãos do contribuinte também eu - deixa-nos conversados em matéria de intimidade. Mas sublinho o reverso: nem sempre os mais velhos amigos acabam por ser os mais íntimos. Tem sido crescentemente incisiva e publicamente notória a competência, qualidade e independência do trabalho arqueológico das finanças públicas desenvolvido pelo TdC, cujos precedentes na história institucional portuguesa são escassos. O nome de Guilherme d'Oliveira Martins não andará desligado do processo e essa justiça deverá ser-lhe feita.
Porém, e embora meritório, talvez seja de curto alcance o contributo institucional do TdC para transformações políticas mais amplas no domínio da transparência, da prestação de contas e da blindagem do interesse público nomeadamente nas operações financeiras em que o Estado tem sido sistematicamente o da Joana. Será com certeza maior o seu contributo epistémico para a deslegitimação de um sistema regulatório e de uma retórica económico-financeira que fizeram a hegemonia da governação nas últimas décadas, com os resultados conhecidos (e desconhecidos). Para simplificar: até lá dentro cheira a merda. Arranjar novos amigos ao Estado e denunciar a estupefaciência dos actuais camaradas será o programa político de qualquer esquerda decente para um bom punhado de anos. Um capricho: só descanso quando se der cabo de meia dúzia de PPPs, à bomba, à bomba, à bomba, à bomba (momento Smiths) se for preciso.
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