O Exemplo


Já seria de esperar que surgisse quem defendesse medidas excepcionais de ataque à crise por via do sacrifício dos "políticos" (entre aspas porque, neste discurso, a palavra não costuma ser utilizada para denominar um grupo de pessoas que se dedicam à actividade política mas a uma corja da pior espécie). Na caixa de comentários de um post que a Andrea aqui colocou, por exemplo, surge um desses casos. Percebendo que a redução dos vencimentos dos "políticos" terá um impacto absolutamente irrisório nas contas públicas, percebo também que a medida é tomada mais como forma de legitimar outras medidas de austeridade, essas sim, verdadeiramente importantes no que diz respeito ao seu impacto no erário público. Percebo também que a medida não faz sentido e que só o faria se tivesse como alvo não "os políticos" mas todas as pessoas que recebem altos vencimentos. Nesse sentido, seria justo um substancial agravamento do IRS nos escalões mais altos do IRS, deixando intactos os vencimentos entre o ordenado mínimo e os 2375€. Atacar de forma proporcionalmente igual quem recebe 475€ e quem recebe 2375€ é, aliás, muito pouco digno de um governo socialista.

Ora, não sou economista e, como Jesus Cristo, não sei nada de finanças nem tenho biblioteca, mas sabendo que o que interessa aqui é equilibrar a balança das contas públicas, só por razões ideológicas se pode teimar na redução da despesa em detrimento do aumento das receitas. Não quero com isto dizer que as razões ideológicas não são perfeitamente válidas, até me custa a entender como é que vem muito boa gente à praça pública apelar a que se deixe de lado a ideologia por uma pragmática tecnocrática em nome do "bem da nação". O argumento é tão mais grave quanto não justifica medidas ideologicamente inócuas mas bem inscritas num ideal de funcionamento das economias baseado em Estados mínimos incapazes de cumprir a sua mais importante função: a de prestar assistência a todos os que, pela via da economia de mercado, não conseguem ter meios de subsistência.

Esta é precisamente a altura em que a ideologia faz mais sentido. Num jogo de estabelecimento de prioridades, de protecção de sectores essenciais, essas escolhas só poderão ser ideológicas porque essa é a natureza da política. A maioria de Esquerda na AR deveria querer dizer alguma coisa, deveria dar indicações do sentido pelo qual queremos ser levados. Poder-me-ão dizer que também há uma maioria do centrão mas se nos lembrarmos do discurso de defesa do Estado, do investimento público e da protecção social que o PS produziu durante a campanha das últimas legislativas, será muito mais justo considerarmos a presente AR como tendo maioria à Esquerda do que como tendo maioria ao Centro. O problema é que somos governados por um PS que tem medo de ser de Esquerda tal como tem medo dos restantes partidos de Esquerda. Um PS que entregou a ideologia, que se rendeu à política como gestão, que, quando os calos apertam, não tem pudor em atacar desempregados e todos os que, pela situação económica se encontram mais fragilizados.

Dar o exemplo, cortando nos vencimentos dos "políticos" não é, portanto, mais do que uma armadilha, um "olha como eu me sacrifico" para sacrificado ver.

7 comentários:

Batinas disse...

O texto está muito bem escrito e para quem não é economista pega muito bem. O problema é quando é lido por um economista, pois nota-se bem que não percebes nada de economia. Assim, apesar de até concordar com algumas coisas, as políticas económicas que o pessoal da extrema esquerda defende levariam ao fim de tudo o que realmente defendem (nomeadamente apoios sociais), pois nunca se esqueçam que só se pode distribuir se se produzir (e endividamente externo eterno e galopante não é solução para distribuir em políticas sociais)e as políticas que defendem só levam a falências e deslocalização de empresas. Por muito que essa realidade custe a aceitar!

Diogo Augusto disse...

Percebo perfeitamente os argumentos e aceito com humildade democrática a acusação de que não percebo patavina de economia. É um facto. Ainda assim, a luta (talvez a maior com a qual a Esquerda se depara hoje em dia) é pela legitimação de caminhos alternativos rumo à prosperidade económica e essas coisas. Há uns tempos, tive oportunidade de elogiar (aqui: http://minoriarelativa.blogspot.com/2010/03/finalmente.html) uma proposta que ia, precisamente, no sentido de indicar propostas políticas de saneamento das contas públicas que não passam pela destruição do Estado-Providência.
E para acabar com alguma demagogia, quanto a deslocalizações, que tal adoptarmos um modelo semelhante ao chinês? Esses não têm esse tipo de preocupações.

Frederica Jordão disse...

"Prosperidade económica" é precisamente a expressão que fazia falta no comentário do Batinas: não será preciso lembrar que estes aumentos de impostos não se orientam para o crescimento económico mas sim para a estabilização da dívida pública, não? Nem que por isso mesmo, o crescimento económico fica comprometido, certo? Aquilo que pensa a extrema esquerda sobre economia em geral não é muito importante aqui - eu até nem conheço bem o Aguiar Branco...

Miguel Serras Pereira disse...

Excelente post. Não é preciso sermos economistas - às vezes até ajuda não sermos - para percebermos que a economia é política de alto a baixo, em comprimento e em altura. Era por isso que os clássicos lhe chamavam economia política. A actual economia é um aparelho de poder que se impõe politicamente e governa furtando-se à discussão democrática, pondo-se a salvo do alcance dos cidadãos que a sofrem. Os que dizem que a economia obriga a que se faça assim ou assado, o que dizem, no fundo, é que esta economia, esta organização da produção, da distribuição e do mercado, e a ordem hierárquica que estrutura o funcionamento das suas relações de poder, exigem a salvaguarda do aparelho contra a democracia, a participação igualitária dos cidadãos na direcção da economia, a manutenção e reforço da hierarquia dos salários e rendimentos. Não podemos avançar na extensão da liberdade política democrática tendo como orientação o auto-governo e a autonomia sem uma repolitização democrática radical de toda a actividade económica, sem a extensão da cena política de modo a incluir a economia naquela, sem uma democratização do mercado e dos rendimentos que atribua a cada um na esfera da economia qualquer coisa de equivalente ao "um voto por cabeça" .
Saudações republicanas

msp

Zé Miguel disse...

Só discordo de uma coisa em relação a este post: o PS não tem medo de ser de esquerda, simplesmente o PS de Sócrates não é de esquerda. Acho que isso é mais do que óbvio, não basta defender a despenalização da IVG ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, há que demonstrar a sua ideologia na politica económica e social.

Quanto ao comentário do Batinas, essa história de apregoar que as ideias económicas da extrema esquerda levariam ao colapso da economia já não pega. Onde é que nos levou 30 anos de política de direita?

Anônimo disse...

Mas já anda aqui o Batinas? valha-me a tuna do cifrão.

Diogo Augusto disse...

"Anônimo", ao menos identifica-se e debate. Sabe o que é isso?

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