Os peritos não se enganam



A Andrea Peniche já se dedicou aqui a aplicar a devida sova verbal mas, como ainda esperneia, não resisto a dar o meu pontapezinho no estômago. Luís Graça, director do serviço de obstetrícia do Hospital de Santa Maria, vai no mesmo sentido e, comparando a IVG a uma operação ao apêndice, diz que tal como esta, aquela também deveria ser paga. Mas será que a operação ao apêndice também deveria ser sujeita ao pagamento de taxas moderadoras? E porquê fircarmo-nos por aí? Porque não criminalizar as segundas e posteriores IVGs?

Os números são ridículos e mostram bem o tipo de raciocínio no qual assenta esta posição: apenas 1,8% das IVGs são feitas por mulheres que já o tinham feito anteriormente. Isto é, não estamos perante peritos com informações privilegiadas nas quais sustentam as suas posições (como falarei adiante), mas perante pessoas que têm uma posição de fundo contra a prática da IVG. É que, seguindo esta linha de raciocínio, as alterações na lei que despenalizaram a IVG não constituem um movimento de aceitação desta prática como justa mas, ao invés, a implementação de uma tolerância. Estes senhores toleram a IVG, mas sem abusos! Não estamos, portanto, perante a consagração de um direito (não faria sentido, por exemplo, que se defendesse que os cidadãos tivessem direito a um julgamento justo mas só num primeiro caso, porque se fossem repetentes já estariam a abusar), mas perante um favorzinho que se faz a quem quer interromper a sua gravidez.

Quer isto dizer que estamos perante pessoas que, não tendo capacidade de fazer retroceder as recentes alterações legislativas, querem, pelo menos, que as sanções sociais continuem a ser pesadas para quem aborta. Gente que encara estas mulheres como devedoras de um favor e que se irritam quando elas "nem se dão ao trabalho de comparecer à consulta".


"Especialistas defendem que está na altura de fazer balanço e de rever a lei do aborto".

Quando se fala nas questões relacionadas com a prática da IVG, confrontam-se, essencialmente, concepções diferentes de justeza que fazem parte das concepções mais gerais de justiça de cada um. São essas concepções que nos permitem formular juízos, traçar limites que separem as práticas justas das práticas injustas. Por outro lado, estas concepções são construídas através de juízos morais, ideológicos e/ou políticos constituindo portanto um sistema referencial bastante sólido. Não são, portanto, baseadas nas fluídas estatísticas nem num saber técnico aprofundado.

Ora, é precisamente esse tipo de saber que faz um especialista. Um especialista, ainda que dotado de um conjunto de conhecimentos que lhe permita apetrechar as suas posições não está, portanto, numa posição privilegiada para emitir juízos mais válidos do que os demais. O problema é que estes especialistas (como, aliás, o Cavaco tem feito a propósito do Euro) servem-se do seu estatuto para imprimir mais legitimidade às suas concepções de justiça. Mas, poder-me-ão dizer que um conselho de ética servirá precisamente para emitir opiniões desse tipo. Talvez mas parece-me que faria mais sentido a existência de um observatório que monitorizasse as medidas e que se deixassem de formulações de juízos mais-legítimos-do-que-os-teus.

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