A vida dela escrevia-se como se um currículo. O currículo era como se a publicidade da vida dela tão outra. O currículo era como se o obituário entrelinhado das esperanças de um si mesmo tão ausente. O currículo, entrelaçado à indispensável carta de apresentação mutante, fazia perigosamente estar ali tudo.
Apesar de se escrever nele apenas o reverso de um mundo de anúncios. Capacidades, empenhos, destrezas. Inovação por medida, liderança e espírito de equipa, juventude e experiência máxima. Dinamismo conformista. Uma auto-confiança tão elaborada que era uma fragilidade evidente. O currículo era a escrita de um campo de valores artificiais e de uma política do eu produtivo numa linguagem tão empresarialmente correcta que ela não poderia nunca acreditar que ali se escrevia.
Assim, ela insistia intimamente tanto que não, quanto publicamente fazia crer(-se) que sim. Publicamente, escrevia-se nesse eu táctico uma outra pessoa necessariamente competitiva, a puxar de galões, buscando capitalizar qualquer pedaço dessa vida que vendia a seu favor, necessitando de acreditar nele para se fazer acreditar. Excepção e palco, numa perfeição que fazia quase suspeitar que não se pudesse encaixar ali uma vida.
Intimamente, o currículo surgia apenas como a escrita formal de um eu aparente, feita para permitir que alhures houvesse essa outra vida secreta que não é passível de ser escrita nos currículos. Cabelos, chuva, manhãs sonolentas e sorrisos cúmplices, pequenas coisas as maiores que não cabem num currículo. Os vícios privados e insignificantes que existem no tempo em que a vida se revolta e tem existência acurricular.
A vida dela insistia em escrever-se perfeitamente como se um currículo. Foi daí que surgiu o pesadelo recorrente de que o obituário da sua vida real era apenas o seu currículo.
Descarada aldrabice
Há 12 horas
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