Letargia/liturgia da vida fácil

Viver com a liturgia da vida fácil

Ligou o aparelho à hora certa. Não porque fosse obrigatório mas porque sentia que o era. O aparelho teimava em não o surpreender seguindo a mesma liturgia/letargia: continuava a jurar a pés juntos que tinha vivido acima das suas possibilidades e agora tinha de pagar por isso, que ia empobrecer merecidamente e tinha de ser mesmo assim.
Sabia que afinal o aparelho lhe gritava: a culpa é tua! Aceitaste o crédito fácil, quiseste ter casa, quiseste ter férias, quiseste ter educação, saúde, quiseste ter tudo.
Pouco depois, sempre sem espaço para qualquer surpresa, chegava a vez dos incitamentos entusiasmados: devia ir embora lá para fora onde ainda se vivia com muito; devia ir para o campo onde se vivia com pouco mas feliz; devia seguir os exemplos gloriosos que exibiam criatividade: o empreendedor e o poupadinho. Claro que sabia que era impossível ao mesmo tempo ser empreendedor e poupadinho, empobrecer e enriquecer, ir para fora e ir para o interior. Sabia que isso afinal era o aparelho que lhe continuava a gritar: a culpa é tua! Não és suficientemente dinâmico para conseguires sair, nem para conseguires ficar bem, para conseguires inovar, para conseguires investir, para conseguires poupar. Para conseguires.

Quebrar a letargia da vida fácil

A mensagem do aparelho fazia caminho a cada dia. Fácil mesmo seria aceitar a sua mensagem da vida fácil. E facilitar-se-ia tanto a vida ao aparelho ao interiorizar-se a culpa…
A vida fácil do aparelho era o futuro de um país em que imigrasse quem pudesse chatear porque queria mais qualquer coisa da sua vida do que seria permitido e ficasse quem aceitasse ser pobre.
A vida fácil do aparelho era o futuro de um país em que o trabalho não tivesse direitos, em que o salário fosse tão baixo que não se consumisse quase nada por causa da balança comercial.
A vida fácil do aparelho era que essa balança fosse a receita da anorexia da maioria.
A vida fácil do aparelho era o futuro de um país pobre e com uma indústria massiva de caridade.
A vida fácil do aparelho era uma retórica antiga da pobreza decente abrindo porta, aberta ou veladamente, para a emigração.
A vida fácil do aparelho era o futuro de um mundo em que o aparelho seria a voz única que nos embalaria na sua letargia fácil. E até quando o desligássemos haveria de ser o eco da sua voz que continuaríamos a ouvir.
E, contudo, sentia algo que impelia a sair da vida letargia. Talvez a secreta esperança de derrubar a ditadura dessa difícil vida fácil.

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