Por uma nova epistemologia


13 comentários:

José Luiz Sarmento disse...

Pois, a brincar, a brincar... Mas há quem leve coisas como esta a sério.

Frederica Jordão disse...

Sem brincadeira, José Luiz Sarmento, concordo com os pressupostos totalmente! Acredito que o feminismo é uma forma de higiene social!

JOSÉ LUIZ FERREIRA disse...

Que feminismo? O meu consiste em acreditar que os homens e as mulheres devem ter os mesmos direitos perante a lei. Tudo o que ficar aquém disto é injusto; tudo o que for além disto corre o risco de produzir monstros.

JOSÉ LUIZ FERREIRA disse...

E essa expressão, higiene social, causou-me cá um arrepio... Porque será?

Frederica Jordão disse...

Caro José Luiz Sarmento, era natural que se arrepiasse, era uma pequena provocação.
De facto, e seguindo o argumento do texto acima, essa lógica ocidental de que se fala, construída sobre um edifício periclitante feito de dicotomias mais do que abstractas, assemelha-se em grande medida aos pinguinhos de xixi na borda da sanita - incómodos, mal-cheirosos e que devem envergonhar quem os deixa.
Talvez como mulher e feminista já esteja um pouco cansada de ter que estar constantemente a justificar a minha posição, daí a ironia.
Perdoe-me o equívoco que se gerou, não sou higienista, de facto.

JOSÉ LUIZ FERREIRA disse...

A lógica ocidental de que fala é precisamente a lógica que os talibans querem impedir as meninas de aprender quando as impedem de ir à escola. E é para adquirir, entre outras coisas, esta lógica - pensamento crítico vs. pensamento mágico, opinião individual vs. tradição grupal, etc. - que muitas dessas meninas estão dispostas a correr risco de vida.

No reverso da medalha: se perguntar aos talibãs porque é que não deixam as meninas ir à escola; ou às autoridades sauditas porque é que não deixam as mulheres conduzir automóveis; ou aos responsáveis dos países onde se aplica a sharia porque é que a palavra duma mulher em tribunal vale metade da palavra dum homem - pode ter a certeza que os argumentos deles não terão nada a ver com a racionalidade ocidental. Pelo contrário, serão incompreensíveis à luz desta racionalidade.

Nunca vi um ataque à razão que não tivesse uma génese totalitária. Não dou por adquirido que o seu seja excepção.

É por isso que o texto que cita é uma monstruosidade repugnante. Mais: na boca duma mulher e duma feminista, é uma traição imperdoável a milhões de mulheres.

Frederica Jordão disse...

Lamento que pense assim, não era essa a minha intenção.
Não sei se interpreto os seus argumentos acerca do papel das mulheres na cultura islâmica da mesma forma - a razão que lhes assiste não é, de facto, e serão os próprios os primeiros a admiti-lo, a ocidental. Será uma racionalidade diferente.
Quanto ao resto, sugiro que releia e procure uma boa tradução para o texto em inglês. Não há nada nele de repugnante e, reafirmo, concordo com cada palavra: "Temos que desenvolver uma epistemologia feminista multi-cultural, um estilo de argumentação que procure não violar, não explorar ou forçar falsas identidades sobre o dito "outro". Precisamos de uma epistemologia que não se limite a justapor variáveis estéreis como "x", mas que pergunte a "x" como "x" se sente e que [já agora] ponha o tampo da sanita para baixo."
Quer melhor do que isto?
Cumprimentos.

JOSÉ LUIZ FERREIRA disse...

"Temos que desenvolver uma epistemologia feminista multicultural".
Isto é um oxímoro. Uma epistemologia parcelar, adjectivada, é um conceito que se contradiz a si mesmo.
Uma epistemologia que procure não violar? Difícil seria inventar uma epistemologia que violasse seja o que for. Não explorar? A mesma coisa. Não forçar falsas identidades? Mas se todas as identidades, incluindo as que atribuímos a nós próprios, são necessariamente falsas! A identidade é a pertença a um grupo: todos nós temos tantas identidades quantos os grupos a que pertencemos. Se há coisa que começa a ser evidente, é que as políticas identitárias - e não me refiro só aos feminismos particularistas - são necessariamente políticas supremacistas e, por melhores que sejam as intenções dos seus defensores, inerentemente totalitárias. Porquê? Porque reforçam a pertença a um grupo, por um lado em detrimento da nossa individualidade, e por outro em detrimento da nossa humanidade comum.

O que é exactamente uma variável estéril? Ou, já agora, uma variável fecunda? São conceitos que nem sequer fazem sentido suficiente para estarem errados. Palavras à sorte, justapostas arbitrariamente.

É concebível que haja racionalidades diferentes. Admito, pelo menos teoricamente, que os golfinhos sejam racionais e que a sua racionalidade seja diferente da nossa. Espero que assim não seja, porque a ser assim nunca haverá comunicação possível.

Mas os talibãs não são golfinhos. O que os motiva a não deixarem as meninas ir à escola não é uma racionalidade diferente: é irracionalidade mesmo, pura e dura. Se assim não fosse, as meninas afegãs, educadas nessa mesma "racionalidade", não sentiriam, como sentem, necessidade doutra. Não arriscariam a vida para recusar a identidade - essa sim, forçada - que os talibãs lhes querem impor.

Andrea Peniche disse...

A ideia de que todos os ataques à racionalidade ocidental têm génese totalitária espanta-me. E espanta-me porque parece querer secundar aquela outra afirmação de «quem não está comigo, está contra mim». Parece-me, precisamente, que a crítica é condição de democracia. A ausência e a repugnância pela crítica é que secunda os totalitarismos.
Todo o pensamento e todas as práticas que se fundam nos princípios da diferença entendida como desigualdade, carência ou subalternidade são criticáveis, no Ocidente como no Oriente, no Norte como no Sul.
Aquilo que defendo é o direito à autodefinição, em contraponto com a heterodefinição que parece ser aquilo que a racionalidade ocidental tem para oferecer.

Frederica Jordão disse...

Compreendo o que quer dizer.
Então, qual seria a solução? Poderemos dedicar-nos apenas ao aconchego do nosso ego, abdicar de partidos políticos - de visões políticas, porque não?, dos grupos recreativos da nossa terra, de clubes desportivos, das comunidades na web, dos blogs.
Essa inflexão vagamente anarquista soa-me a liberalismo... Inspiração de dia de eleições partidárias?
E continuo sem perceber a insistência nos talibã: acha que a racionalidade ocidental de que se fala aqui é assim tão inocente? Qual foi o resultado prático de centenas de anos de imperialismo?

JOSÉ LUIZ FERREIRA disse...

Não há racionalidade ocidental nem racionalidade oriental. Ou se pensa racionalmente, ou se pensa irracionalmente, e isto é tão válido em Portugal como no Afeganistão. Se um dia se descobrir que existem seres inteligentes extraterrestres, quase que juro que a racionalidade deles será igual à nossa: acreditarão, como nós, que dois mais dois são quatro, que uma coisa não pode ser ela própria e o seu contrário, que eu não posso estar neste momento em Braga se estou aqui na Maia a teclar no computador.

Isto não invalida, como a Andrea parece implicar, a necessidade de sermos tolerantes, de respeitarmos as opiniões dos outros, de aceitarmos as críticas e de aprendermos com elas. A mesma racionalidade pode conduzir a conclusões e opiniões diferentes pela simples razão que todos somos falíveis. Quando eu erro um raciocínio, a falha é minha, e não da "racionalidade ocidental". Porque sou falível, preciso de quem me corrija; e porque preciso de quem me corrija, sou tolerante.

Insisto nos talibãs apenas porque são um bom exemplo, entre muitos outros, duma tirania baseada na irracionalidade. Mas poderia falar com igual propriedade no nazismo, na revolução cultural chinesa, e em muitas outras ideologias assassinas que fizeram do irracionalismo ou do anti-racionalismo o seu princípio de acção.

Alguém disse que se os seres humanos fossem anjos não seriam precisos governos. Mas, como não são anjos nem intelectos puros, precisam não só de governos, como de partidos políticos, de grupos recreativos, de comunidades na web, de blogs, e de todas as outras instâncias onde possam confrontar seus erros com os erros dos outros de modo a poderem chegar racionalmente a consensos um pouco menos errados.

Diogo Augusto disse...

José Luíz Sarmento, a crença na bondade da racionalidade já foi há muito desmontada. Por dois motivos simples: 1) não uma racionalidade mas várias racionalidades e 2) racionalidade e ética ou justiça não só não são a mesma coisa como, muitas vezes, são auto-excludentes. Um exemplo disso é a visão funcionalista da família: a divisão diferenciada e complementar dos papéis de género é racionalíssima. O homem trabalha fora de casa, a mulher trabalha dentro de casa complementando os papéis um do outro para que cada um deles possa desempenhar o seu papel da melhor forma. É racional? Claro que sim. Mas será justo? Nem em Gaia, nem em Braga, nem na China nem em Marte.

José Luiz Sarmento disse...

Não, Diogo, não foi desmontada. Foi alegadamente desmontada, mas para o ser de verdade teria que ser com base em argumentos racionais, ou seja: a alegada desmontagem refutar-se-ia a si mesma.

Não há várias racionalidades, há só uma. Podemos falar, para economizar palavras, em várias lógicas, mas isto não é para levar à letra: quando eu digo, por exemplo, que o PEC é racional no âmbito duma lógica liberal, não estou a dizer que há uma racionalidade para os neoliberais e outra para os keynesianos: estou simplesmente a dizer que a mesma racionalidade, partindo de pressupostos diferentes, leva a conclusões diferentes.

Isto mesmo se aplica ao seu exemplo: o estereótipo do homem no trabalho e da mulher em causa só é racional no âmbito duma escolha política prévia. No âmbito doutra escolha, este estereótipo será irracional; mas os processos lógicos aplicados serão os mesmos.

O que foi desmontado há muito tempo não foi a racionalidade, mas sim o racionalismo, ou seja: a crença de que a aplicação da razão leva necessariamente à verdade. Mas se o racionalismo foi desmontado, isto deve-se precisamente à sua irracionalidade, uma vez que parte do princípio falso de que o ser humano pensante é infalível.

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